Artigo

Inovar o currículo para melhorar a aprendizagem: o caso do curso de Medicina da Universidade do Minho

 

José Carlos Morgado[1]

CIEd, Universidade do Minho 

 

Adriana Campani

Universidade do Vale do Acaraú

 

 

RESUMO

Neste texto partilhamos alguns dados que recolhemos através da análise dos princípios e da organização do currículo do curso de Medicina da Universidade do Minho. Para o efeito, analisámos documentos estruturantes do curso e os relatórios de avaliação institucional. Além disso, realizámos entrevistas a elementos da gestão, professores e alunos. Com base nas informações recolhidas, realizámos uma análise que permitiu identificar as seguintes categorias: propósitos e estrutura do currículo; processo de construção e gestão curricular; aspetos inovadores do currículo; desafios e possibilidades para uma cultura de inovação curricular. O curso analisado destaca-se por apresentar um currículo diferenciado e inovador.

Reconhecendo a inovação curricular como uma experiência intercultural reinventada, epistemológica e socialmente construída, sustentada por um currículo includente, concluímos que o currículo do curso analisado inova porque reconhece outras formas de produção de saberes (éticos, culturais, populares...), incorpora a dimensão sóciohistórica do conhecimento, incentiva a gestão partilhada dos atos pedagógicos com ações reflexivas e compreende o conhecimento médico como algo complexo, passível de reconfigurações, devendo ser (re)construído em cenários de justiça curricular. No fundo, com este estudo damos visibilidade a experiências inovadoras e demonstramos a potencialidade dessas experiências para um Ensino Superior mais inclusivo, mais intercultural e mais democrático.

Palavras-chave: 

Inovação Curricular; Formação Inicial; Ensino Superior; Curso de Medicina.

  

ABSTRACT

In this text, some of the data gathered through the analysis of the principles and of the curricular organisation of the degree in Medicine of the University of Minho are shared. To that effect, we have analysed the degree’s structuring documents and institutional evaluation reports. We have also conducted interviews with elements of the degree’s management, teachers and students. The analysis of the information thus gathered allowed us to identify the following categories: purposes and structure of the curriculum; challenges and possibilities for a culture of curricular innovation. The degree under analysis stands out by presenting a differentiated and innovative curriculum. 

Acknowledging curriculum innovation as a reinvented intercultural experience, epistemologically and socially constructed and sustained by an inclusive curriculum, we conclude the degree under analysis is innovative as it recognizes other forms of knowledge production (ethical, cultural, popular…), it incorporates the socio-historical dimension of knowledge, promotes the shared management of pedagogical actions by reflection, and understands medical knowledge as complex, passible of reconfiguration and (re)constructible in curricular justice scenarios. To conclude, the present study lends visibility to innovative experiences and demonstrates their potential for a more inclusive, intercultural and democratic higher education.

Keywords: 

Curricular innovation; initial training; higher education; degree in Medicine

 

INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, as práticas de ensino nas instituições universitárias eram orientadas, sobretudo, para a assimilação e reprodução do conhecimento, da informação pronta a utilizar, o que contribuía, por norma, para uma aprendizagem cumulativa, baseada essencialmente na memorização. Eram práticas educacionais que estimulavam a dicotomização do aluno ao bloquear o ato de pensar, inibindo a produção de ideias e conhecimentos independentes e/ou divergentes. Pouco, ou nenhum, espaço era reservado para a exploração, a descoberta, a fantasia e a imaginação. A inovação curricular era reduzida, pouco estimulada ou mesmo inexistente, o que acabou por dificultar a concretização de uma formação mais integral dos sujeitos e dos profissionais, especialmente dos docentes.

Atualmente vivemos um tempo pejado de transformações, muitas delas inéditas, impulsionadas por novos conhecimentos e avançadas tecnologias, o que carreia uma série de desafios e mudanças em vários ambientes, inclusive no domínio educacional. Nessa perspetiva, constatamos que não basta ensinar o que é conhecido, sendo necessário preparar o aluno para questionar, refletir, mudar e inventar.

A este respeito, Masetto (2003) afirma que nos próximos cinquenta anos as escolas e as universidades sofrerão mudanças e inovações mais drásticas do que nos últimos trezentos anos, quando se reorganizaram por causa da ascensão da imprensa e dos média. Tão drásticas e tão geradoras de incerteza que Harari (2018) afiança que não conseguimos prever que tipo de aptidões precisará, daqui a trinta anos, uma criança que entre hoje na escola. Isso porque as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), a Informática e a Telemática, bem como a necessidade de uma aprendizagem contínua, criaram novas exigências sociais, compelindo as organizações a encontrar respostas inovadoras, uma vez que as soluções antigas não são suficientes, nem adequadas. É nesse sentido que Pérez Gómez (2015) lembra que a complexidade do mundo atual requer que cada indivíduo desenvolva recursos e capacidades de ordem superior, para conseguir enfrentar a complexidade, a incerteza, a mudança e as desigualdades da era digital. Só assim conseguiremos descartar-nos de esquemas de pensamento mais obsoletos, que nos impedem enfrentar com abertura e liberdade os reptos contemporâneos.

Já em 1998, a Declaração Mundial sobre Educação Superior para o Século XXI: Visão e Ação, da UNESCO, apresentava como missão do Ensino Superior a formação de pessoas qualificadas e de cidadãos responsáveis, a promoção da aprendizagem permanente, a realização e difusão da investigação e a proteção e consolidação de valores sociais atuais, tais como o humanismo, a solidariedade e a cidadania democrática. Citava como função ética da universidade, a necessidade de reforçar a cooperação da Academia com o mundo do trabalho, analisando e prevenindo as necessidades da sociedade.

Esse documento da UNESCO identifica também alguns aspetos que exigem mudanças essenciais e inovadoras na educação superior, quer seja nos curricula, nos métodos pedagógicos, na formação contínua de professores, incluindo a formação pedagógica, quer seja na incorporação crítica da tecnologia, da educação a distância e da compreensão e exploração dos ambientes virtuais.

Seguindo essa linha, o Processo de Bolonha, implementado até 2010, estimulou a flexibilização dos currículos e a mobilidade académica e profissional dos estudantes nas universidades europeias. Isso foi possível porque esse processo foi criado para enfrentar problemas internos e externos comuns; relacionados com o crescimento e a diversificação do ensino superior, a empregabilidade dos seus graduados e a falta de recursos humanos para áreas emergentes e estratégicas do mercado internacional. Embora o processo de Bolonha, relativamente à formação no ensino superior, tenha investido mais numa resposta económica do que pedagógica (Amaral, 2005; Morgado, 2009), a sua implementação provocou uma “discussão paradigmática no ensino universitário, ao exigir planos curriculares organizados por competências e não conteúdos, levando o professor a rever sua postura pedagógica” (Campani, 2008).

Um dos parceiros nessa discussão tem sido a Escola de Medicina (EMed) da Universidade do Minho, uma unidade orgânica que assegura o ensino graduado, o ensino pós-graduado, a investigação e outros serviços especializados na área de Ciências da Saúde. O objetivo central da EMed é oferecer um curso inovador de Medicina com Mestrado Integrado. Na pós-graduação, assegura programas de Mestrado e de Doutoramento em Medicina e em Ciências da Saúde e um programa internacional de Formação Avançada e Contínua nas áreas da Medicina e da Biomedicina.

A EMed iniciou as suas atividades em 2001, com o propósito de se assumir como uma escola diferenciada em relação a outras escolas de medicina em Portugal.

Os primeiros 3 anos curriculares conferem o grau de Licenciatura em Ciências Básicas da Medicina e no final dos 6 anos curriculares os alunos obtêm o grau de Mestre, ficando qualificados para o acesso a todas as especialidades médicas disponíveis no espaço europeu[2].

 

O curso de medicina da Universidade do Minho apresenta os princípios e procedimentos curriculares que o norteiam no site da Escola. Com base nessas informações e nos depoimentos de representantes da gestão, de professores e de alunos podemos compreender como é que o curso funciona e a lógica curricular inovadora em torno da qual se estrutura.

Para o efeito, realizámos uma análise qualitativa do mesmo, com base numa série de documentos e num conjunto de entrevistas – um elemento da gestão da Escola (G1), dois professores (P1 e P2) e três estudantes (A1, A2 e A3) – que submetemos a uma análise de conteúdo.

 

A Inovação Curricular na Universidade

O caráter histórico e político do currículo universitário torna evidente que, durante muito tempo, se configurou na base da razão técnico-instrumental e da “gestão científica” do ensino, com uma arquitetura curricular precisa, tendo em vista alcançar objetivos que fossem claros, observáveis e mensuráveis. Uma das grandes consequências da racionalidade instrumental foi a perda da autonomia do indivíduo. A racionalidade técnica eliminou qualquer tentativa de rutura porque o aparelho produtivo se impôs ao sistema social como alternativa hegemónica (Adorno & Horkheimer, 1986), retirando do currículo poderes de decisão humana em prol das decisões de cariz mais técnico (Beane, 2003).

Uma das principais críticas das consequências da razão instrumental para a sociedade e o conhecimento advém de Santos (2000), através do que denomina por Epistemologias do Sul [3] , reconhecidas por este investigador como forma de fortalecer as possibilidades emancipatórias das comunidades que procuram alternativas de resistência à hegemonia capitalista. O papel da universidade passaria por fortalecer essas comunidades, contaminando-se pelas suas epistemologias para produzir novos conhecimentos e novas racionalidades.

Nesse sentido, Santos (1993 e 2008) propõe uma rutura com a forma tradicional de ensinar e aprender na universidade, sem desvalorizar a contribuição da ciência assim construída, apenas reconhecendo outras formas de produção de saberes, incorporando a dimensão sócio-histórica do conhecimento e a sua dimensão axiológica, que une sujeito e objeto.

O processo de rutura paradigmática reivindica novos desenhos curriculares, ancorados agora em construções epistemológicas democráticas, protagonistas, interculturais e includentes. Nessa perspetiva, o currículo deve ser “organizado em torno de questões pessoais e sociais, planificado de modo colaborativo e colocado em ação por professores e estudantes conjuntamente, e, ainda, comprometido com a integração do conhecimento” (Beane, 2003, p.96). Na perspetiva de Beane (2003), o currículo deve ser uma “integração significativa de experiência e de conhecimento” e não uma espécie de “capital para acumulação e ornamentação cultural”.

A integração curricular transcende os propósitos do currículo prescrito, tão típico da academia, porque se propõe integrar experiências gerando novas sociabilidades. Por isso se desenha a partir de experiências reais e seus protagonistas, que procuram novas configurações do conhecimento.

Assim, podemos inferir que as inovações curriculares se configuram a partir de experiências que podem ser pontuais, momentâneas, contextuais, relativas, de dimensões variáveis, cujo movimento é construído pelos seus protagonistas. Um currículo que reconheça as diferenças, o desenvolvimento de posturas investigativas, o fortalecimento dos saberes, mediante a participação ativa dos estudantes universitários, e a construção de conhecimento contextualizado e com utilidade, consignando, assim, legitimidade ao que Santos (2008) designa por conhecimento pluriversitário.

Nesta ordem de ideias, Beane (2003) garante que para a integração da experiência ocorrer é necessário saber como é que os sujeitos podem enquadrar as questões e as preocupações utilizadas para organizarem o currículo, bem como as experiências que acreditam que podem ajudá-los na aprendizagem.

O que aprendemos através da reflexão sobre as nossas experiências torna-se um recurso para lidar com problemas, questões e outras situações, tanto pessoais quanto sociais, à medida que estas surgem no futuro. Estas experiências e os esquemas de significação que construímos a partir delas, não se posicionam simplesmente nas nossas mentes como categorias estáticas e endurecidas. Pelo contrário, constituem significados fluidos e dinâmicos que podem ser organizados de uma determinada maneira para lidar com um assunto, de uma outra maneira para lidar com um segundo assunto, e assim sucessivamente (Beane, 2003, p.94).

O processo de integração favorece o protagonismo curricular à medida que vai reconhecendo novas autorias, na perspetiva da produção do conhecimento. Compreende a participação dos alunos e dos professores nas decisões curriculares, a valorização da produção pessoal, original e criativa dos estudantes, estimulando processos intelectuais mais complexos e não repetitivos (Lucarelli, 2003). O protagonismo afasta-se dos parâmetros únicos e estimula a autoria dos aprendizes, na perspetiva da produção do conhecimento. Este não assume a condição de inédito, mas é novo para aquele que pela primeira vez o descobre, a partir da sua condição experiencial. 

A construção de um currículo inovador é mediada por relações participativas e democráticas, onde múltiplos autores disputam ideias, mudanças e reformas na educação. Por isso, são relações capazes de mediar conflitos, de negociar estratégias para o fortalecimento das experiências e de desenvolver compreensões valorativas e habilidades para lidar com a complexidade das relações sociais.

Nesse sentido, as relações interpessoais são aprimoradas porque participam das decisões curriculares com posturas reflexivas perante o poder e o oficial. As decisões coletivas são sempre marcadas, não necessariamente por algo novo, mas por algo melhor para um determinado grupo, num determinado contexto sociocultural.

Para gerar inovação curricular é necessário provocar mudanças conscientes e intencionais com o propósito de transformar o existente, tendo como consequência o desequilíbrio ou a rutura com a estrutura vertical de poder. O princípio inovador tem mais probabilidade de permanecer se o processo de mudança se basear em ideias públicas de educação (para todos), porque nelas residem os propósitos da inclusão e da interculturalidade.

Nesse sentido, consideramos que a cultura de inovação curricular na universidade se pode desenvolver a partir de um processo permanente de integração da experiência com o conhecimento, de participação nas decisões curriculares (Beane, 2003), de legitimação do conhecimento pluriversitário (Santos, 2008) e do protagonismo dos estudantes na relação ensino-aprendizagem (Lucarelli, 2003).

Tendo em conta os aspetos referidos, o currículo do curso de medicina da Universidade do Minho apresenta elementos que favorecem uma cultura inovadora. Verificamos que a organização curricular é sustentada pelo princípio da integração e pela flexibilidade e o desenvolvimento curricular centrado na aprendizagem do aluno.

 

Integração e flexibilidade do currículo no curso de medicina da Universidade do Minho

O currículo do curso de medicina da Universidade do Minho é constituído por cinco áreas científicas: Saúde Comunitária; Ciências Sociais e Humanas; Ciências Biológicas e Biomédicas; Patologia e Clínica. Os conhecimentos das áreas científicas estão organizados em trinta e quatro unidades curriculares. Cada unidade curricular pode conter elementos de uma ou mais áreas científicas. As unidades curriculares de Projeto de Opção I, II, III e Estágio Final contemplam cinco áreas científicas cada uma, justamente porque desempenham um importante papel na flexibilização do currículo porque permitem aos alunos, ao longo do curso, realizarem vários projetos de livre escolha.

Na opinião de um dos gestores da escola (G1), as unidades curriculares têm o objetivo de promover a “integração horizontal dos conteúdos”. O currículo do curso não se organiza por disciplinas, mas por unidades curriculares, que cumprem o papel de integrar as áreas científicas. As unidades curriculares são temáticas e sequenciais.

Conforme informações obtidas no site da escola, confirmadas nas entrevistas, os primeiros 3 anos do curso estão, na generalidade, organizados em módulos de 4 semanas, onde diversas áreas científicas se organizam de forma integrada, em função de temas específicos, tais como: Sistema cardiovascular e respiratório; Sistema urinário; Sistema reprodutor, etc. A partir do 4º ano a área científica clínica também se organiza em módulos, de acordo com temas comuns, abordados de forma integrada (por exemplo, osteoporose). A aprendizagem está organizada em blocos de 4 a 13 semanas de permanência em estabelecimentos de saúde (Residências), complementados com seminários temáticos e discussão de casos clínicos.

Embora os estudos de Beane (2003) sobre integração curricular estejam mais relacionados com a epistemologia das disciplinas escolares nos ensinos básico e secundário, constatamos que o conceito de integração curricular também pode [e deve] ser trabalhado no domínio universitário. Na perspetiva de Beane (2003), a integração curricular surge na confluência da integração de experiências, da integração social, da integração do conhecimento e da integração como conceção de currículo.

A integração de experiências consiste em recorrer a vivências sociais ou pessoais na construção do conhecimento. Podemos identificar esse princípio de integração na perspetiva das unidades que trabalham os “projetos de opção”, que visam “reforçar a consciência de que o estudante é o construtor da sua própria formação e contribuir para uma aprendizagem ativa”[4]. Embora as vivências sociais e pessoais dos alunos do curso não sejam o ponto de partida para as decisões das unidades curriculares, as mesmas são valorizadas no sistema de ensino que desenvolvem essas unidades.

A integração social envolve a promoção de valores relativos ao bem comum de uma sociedade democrática. É possível verificar que o currículo do curso se fundamenta numa conceção humanista da Medicina. Intencionalmente, criaram-se espaços curriculares que extrapolam o “estritamente biológico e clínico”. Nos designados “Domínios Verticais (1º ao 5º ano) são exploradas áreas do saber como filosofia, ética, história, literatura e outras formas de arte” 5, cujo principal objetivo é a aquisição de valores, saberes, sensibilidades, atitudes e comportamentos essenciais para uma boa relação com os doentes e com a sociedade. No depoimento de uma discente (A1) foi possível confirmar que esses saberes permitem ao estudante desenvolver uma relação empática com o doente e, portanto, uma relação ativa e reflexiva com o conhecimento científico:

A escola é baseada no modelo biopsicossocial. Prioriza a dimensão humana da medicina. Os alunos aprendem a respeitar os pacientes e as suas crenças espirituais e culturais. Não queremos mudar as suas crenças, mas ajudar a obter os melhores resultados para melhorar a sua saúde e a sua qualidade de vida. (A1)

Na perspetiva da integração de conhecimento, o currículo deve valorizar os saberes relevantes para as questões pessoais e sociais e não apenas os conceitos técnicos e científicos. Nos depoimentos recolhidos foi possível constatar que o curso de medicina está orientado para comunidade. Há um entendimento generalizado de que “o exercício da medicina é um ato social” (A2). Por isso, desde o 1º ao 6 ano, o estudante é, progressivamente, inserido na comunidade para desenvolver competências nas diferentes áreas curriculares. Assim, se no 1º ano do curso acompanha o dia-a-dia de um médico de família, no 3º ano inicia a aprendizagem clínica em diferentes Centros de Saúde e Hospitais da região para experienciar distintas realidades (meio rural/meio urbano, hospital central/hospital distrital, etc.).

Ora, um currículo que integra o conhecimento científico com o social tem a possibilidade de contribuir para uma rutura com o paradigma técnico-instrumental, podendo assumir-se como um espaço de encontro de diversos tipos de saberes, favorecer a incorporação de outros saberes e provocar uma reflexão sobre as práticas que são constituídas através das experiências, o que permitirá criar um novo senso comum.

A integração deve ser uma conceção de currículo e não uma técnica alternativa de organização disciplinar. Os depoimentos dos entrevistados e os documentos disponíveis no site da EMed revelam que prevalece uma conceção de currículo alicerçada na interdisciplinaridade, na integração horizontal dos conteúdos e na flexibilidade curricular, numa lógica sustentada por dimensões éticas, humanas e sociais. “Há uma abordagem interdisciplinar das áreas científicas, o que permite uma aprendizagem mais global”, afirma um dos estudantes entrevistados (A2); “Sim, há uma integração horizontal dos conteúdos, o que permite um conhecimento mais sustentado”, afirma outro entrevistado (A3). São abordagens distintas, pois existem estudos como o de Aires (2011) que demonstram que existem diferenças entre interdisciplinaridade e integração curricular. 

A explicação para esse argumento consiste no facto de que a Interdisciplinaridade pressupõe a organização curricular por disciplinas e que, fundamentalmente, as barreiras entre estas devem ser quebradas. Já a Integração Curricular não parte das disciplinas, mas dos centros de interesse, e só depois de levantados quais conhecimentos serão necessários para a resolução daquele determinado problema é que serão buscadas as respetivas disciplinas. Portanto, consideramos que a principal diferença entre os dois termos consiste no fato de que a Interdisciplinaridade (seja na conceção hegemônica ou crítica) está relacionada ao aspecto interno da disciplina, ou seja, ao conteúdo. Enquanto que a Integração Curricular está relacionada ao aspecto externo à disciplina, ou seja, à problemática (Aires, 2011, p. 227).

Em suma, se a interdisciplinaridade pressupõe um currículo organizado por disciplinas, sendo o seu principal objetivo diluir as suas fronteiras, a integração curricular pressupõe uma organização curricular que parte dos centros de interesse dos alunos para os sintonizar com os interesses das disciplinas.

No currículo do curso em análise coexistem as duas perspetivas. Como as unidades curriculares são temáticas, os saberes das áreas científicas são contemplados durante o desenvolvimento dessas unidades. As fronteiras epistemológicas, tradicionalmente construídas pelas disciplinas, são rompidas, movimentadas, reconstruídas e redesenhadas num processo dinâmico e permanente, provocado pela transversalidade temática das unidades curriculares[5]. Salientando que a natureza temática é sempre ética, política e social, visando a melhoria da sociedade, as unidades curriculares assumem-se como um espaço curricular de transversalidade, acolhendo a interdisciplinaridade em forma de experiências de ensino e aprendizagem na universidade.

Associada à integração curricular, a flexibilização é também assumida como um princípio estruturante do curso, estando prevista ao nível da própria organização curricular. Nesse sentido, ao longo do curso, o estudante tem oportunidade de explorar interesses e futuros percursos profissionais. Os Projetos de Opção são unidades curriculares previstas ao longo do curso, o que permite ao estudante realizar vários projetos de interesse mais pessoal, cujo tema e local da aprendizagem (em Portugal ou no estrangeiro) fazem parte da sua escolha. Outras unidades que contribuem para flexibilizar o currículo são as Residências Opcionais, que permitem aos estudantes aprenderem e melhorarem a prática clínica num serviço hospitalar à sua escolha.

Ao criar espaços para percursos formativos específicos, que dão resposta aos interesses e afinidades dos estudantes, a flexibilidade do currículo, para além de contribuir para a diversidade formativa que deve caracterizar as instituições formativas, assume-se como um contributo essencial para a construção de uma cultura de inovação curricular. Ao mesmo tempo que o currículo do curso se abre aos novos conhecimentos e saberes desses percursos alternativos, os interesses dos estudantes são incluídos e reconhecidos pelo próprio currículo.

Embora não possamos deixar de concordar com a necessidade de todos os estudantes percorrerem um caminho comum, essencial para uma aprendizagem orientada pelas competências de todos os aspetos da profissão médica (Pêgo et al., 2017), a utilização de estratégias diferenciadas e abertas aos interesses dos estudantes faz da flexibilização uma aliada da inovação curricular. No entanto, só faz sentido se essa flexibilidade for construída e gerida em um processo democrático de desenvolvimento curricular, centrado nos estudantes.

Além disso, a flexibilidade curricular permite a criação de novos espaços, que permitem que os saberes emergentes das culturas e identidades locais possam ser incluídos no processo formativo que decorre nas universidades. Em suma, a flexibilidade acolhe e estimula a transversalidade, a interdisciplinaridade, a integração curricular e as estratégias que rompem com a fragmentação do conhecimento e o distanciamento dos processos de ensino-aprendizagem das realidades sociais concretas.

 

Desenvolvimento curricular centrado na aprendizagem do estudante

Como acabamos de constatar, a integração e a flexibilidade contribuem para que as atividades curriculares sejam desenhadas com o objetivo de promover uma aprendizagem centrada no estudante. Esse é também um dos propósitos que norteiam o curso em análise, tendo a Escola a preocupação de disponibilizar os meios necessários para o efeito.

O curso proporciona os momentos de aprendizagem adequados, a disponibilidade constante de tutores e professores e as ferramentas de aprendizagem de que o aluno necessita[6].

Assim, o modelo de ensino em que se baseia o curso inscreve-se na modalidade Blended Learning (B-Learning), que combina sessões de formação a distância com sessões de formação presencial. Para o efeito, o processo de ensino-aprendizagem é mediado por uma plataforma virtual integrando momentos presenciais na sala de aula. Trata-se de uma formação mista, que envolve tutoria a distância, numa determinada fase, e um professor na sala de aulas, numa outra fase.

Com este modelo de ensino, o curso utiliza as tecnologias para transformar e melhorar a aprendizagem e para motivar o estudante a envolver-se de forma autónoma nesse processo e a assumir-se como protagonista da sua aprendizagem. Segundo um membro da gestão (G1), o propósito é promover uma “autoaprendizagem tutorada” que ocorre em várias fases: (i) a 1ª fase em que são discutidos os objetivos do módulo; (ii) a 2ª fase em que, com apoio dos professores, os estudantes exploram os conteúdos programáticos e tentam desenvolver as diferentes competências, em aulas com dimensão prática e de resolução de problemas; (iii) a 3ª fase, mais conduzida pelo professor, em que sistematizam os conteúdos; (iv) a 4ª fase de esclarecimento de dúvidas e de revisões; e (v) a 5ª fase destinada à avaliação.

Perante as possibilidades pedagógicas e didáticas da modalidade B-Learning, o processo de ensino-aprendizagem decorre com base na interação e colaboração permanente entre o professor e os estudantes. Nesse processo de ensino-aprendizagem as ferramentas digitais desempenham um papel relevante, uma vez que facilitam o desenvolvimento das capacidades intelectuais, habilidades e atitudes previstas a partir das experiências vividas pelos estudantes. Essas práticas pedagógicas inovadoras, para além de estimularem o desenvolvimento de competências tais como criatividade, criticidade, objetividade e autonomia, permitem que o professor e os estudantes, engajados nesse ambiente facilitador, se tornem co-construtores de um conhecimento significativo, com sentido e utilidade. Contudo é necessário apropriarem-se dos objetivos de aprendizagem, das metodologias e da avaliação, recorrendo a uma reflexão conjunta sobre qualquer ação inovadora que possa tornar-se realmente efetiva.

O currículo do curso é desenvolvido de forma a considerar as necessidades e potencialidades dos alunos, estimulando-os a procurar respostas e/ou criar soluções para as questões apresentadas pelos professores ou decorrentes das suas experiências. Tal postura, associada à utilização recorrente das ferramentas tecnológicas, faz do aluno o protagonista da sua própria aprendizagem. Esse protagonismo contribui para que o estudante “comece a trabalhar com casos clínicos desde do primeiro ano do curso, favorecendo uma aprendizagem mais prática e mais contextualizada” (P2).

Esta é uma pretensão comum, já que é necessário tratar o conhecimento universitário de modo contextualizado, aproveitando sempre as relações entre os conteúdos e o contexto onde são produzidos/utilizados, o que permite conferir sentido e significado ao aprendido, estimular o protagonismo do estudante e facilitar a construção da sua autonomia intelectual. Assim se compreende que a contextualização seja importante para o estudante dar significado ao conhecimento problematizado e aprendido na discussão de cada temática ou ao longo de cada unidade curricular.

Cada unidade curricular pode ser trabalhada por um ou mais professores. Também os professores de uma área científica podem participar em várias unidades curriculares ao mesmo tempo. Esta organização curricular exige que exista uma comunicação permanente e um planeamento do ensino de modo colaborativo. Além disso, no site da EMed é disponibilizada uma série de informações – unidades curriculares, ECTS, área ou as áreas científicas predominantes, objetivos, resultados de aprendizagem, modalidade e métodos de ensino, língua de instrução, carga horária (aulas teóricas, teórico-práticas, práticas laboratoriais, trabalho de campo, trabalho autónomo), programa sucinto, bibliografia essencial, processo de avaliação – que favorecem o planeamento dos trabalhos e o desenvolvimento das unidades curriculares, além de tornar público como é que cada unidade deve ser trabalhada.

Importa referir que, numa perspetiva coerente com o desenvolvimento curricular centrado no aluno, a avaliação da aprendizagem é processual, sendo reconhecida como “um instrumento para um aperfeiçoamento constante”. Por isso, os diferentes momentos de avaliação são, intencionalmente, “distribuídos ao longo do ano letivo, o que exige ao aluno um investimento contínuo na sua aprendizagem”[7]. Acresce o facto de, para além dos alunos, também os docentes e as áreas curriculares serem avaliados.

O desenvolvimento do currículo centrado no estudante é apreciado pelos próprios estudantes, sendo frequente ouvir declarações como a que a seguir transcrevemos, proferida por uma das estudantes entrevistadas:

Gosto deste currículo porque nos permite desenvolver uma visão mais integrada e mais integradora. É mesmo isso! Depois, no final de cada unidade curricular, há um teste integrado em que se avaliam vários estudos daquela unidade e o que aprendemos nos módulos. Essa avaliação verifica o que aprendemos nos casos clínicos (A2). 

Para além da aprendizagem nas unidades curriculares, o desenvolvimento de competências clínicas ocorre, também, no Laboratório de Aptidões Clínicas (LAC). Segundo o membro da gestão que entrevistámos (G1), “o LAC é um espaço inovador, onde os estudantes, com a supervisão de um tutor clínico, podem desenvolver e/ou aperfeiçoar as suas competências clínicas”. Conforme informações disponibilizadas no site da EMed, o LAC permite ao aluno realizar:

  1. Treino de Gestos Clínicos: que envolve o exame físico do doente, a sutura de uma ferida ou a colheita de sangue venoso. O LAC garante acompanhamento personalizado do estudante e fornece tecnologia moderna “em material médico e de simulação clínica para aprender e treinar todos os gestos, de modo a executálos corretamente e com confiança.”
  2. Aprendizagem com doentes estandardizados: recorrendo, para o efeito, a atores treinados para simularem várias patologias e criando ambientes próximos dos reais (urgência, consulta, etc). Trata-se de uma metodologia muito pertinente, uma vez que se procura “ensinar o aluno a conhecera a história clínica do paciente para realizar o diagnóstico”.

Outra das estudantes entrevistadas (A3) garante que a aprendizagem com doentes estandardizados “é uma mais-valia, uma vez que permite adquirir novos conhecimentos, para além de conferir segurança na aprendizagem”. Também esta metodologia se revela inovadora porque, para além de romper com outras de pendor mais tecnicista, em que a lógica transmissiva prevalece sobre as demais, aproxima os estudantes dos contextos e de situações com que, por certo, se virão a confrontar futuramente.

Não deixando de estar perante práticas inovadoras, aqui entendidas como mudanças deliberadas e conscientemente assumidas (Correia, 1989, p.31), trata-se de inovações especiais, uma vez que 

(…) irrompem no interior de processos pré-programados não explicitando, muitas vezes, os seus objetivos ou as suas estratégias e são uma consequência do exercício de um poder instituído conquistado pelos professores (idem, p.36).

Em suma, no contexto universitário, a inovação acontece quando métodos ou técnicas de ensino favorecem a integração de conteúdos e a integração social dos estudantes e estimulam a sua participação noutros níveis para além do intelectual. Essa participação é favorecida pela inovação curricular, uma mudança deliberada, conscientemente assumida para aprender, para alterar conceitos e ideias, para assumir novos comportamentos e atitudes, para repensar a cultura pessoal e organizacional, para mudar crenças, adquirir novos conhecimentos e aderir a novas formas de pensar e agir.

 

Aspetos inovadores do currículo

Partindo do princípio de que a inovação é uma alteração promovida de forma intencional, com o intuito de melhorar tanto as práticas como os resultados da ação educativa (Masetto, 2004), os docentes e o gestor que entrevistámos consideram que o currículo do curso de medicina se considera inovador porque:

  1. tem uma dimensão democrática – porque “estabelece uma relação democrática com o aluno e estimula-o a participar” (P1);
  2. tem uma dimensão prática – uma vez que o “o modelo de ensino vigente prevê mais tempo para trabalhar com situações problema e menos tempo para aulas expositivas” (P2);
  3. tem uma dimensão integrativa – porque existe “comunicação entre as unidades curriculares, o que viabiliza uma efetiva integração curricular; embora haja autonomia nas unidades curriculares há interdependência entre elas” (G1);
  4. tem uma dimensão gestora comprometida com a qualidade – “porque tem um sistema de comissões que acompanha e aperfeiçoa o curso: comissão permanente de avaliação da escola, comissão de aconselhamento internacional (padrões de qualidade internacional); comissão técnica que acompanha os alunos, faz estudos técnicos com os professores; comissão administrativa” (G1).

Os aspetos referidos permitem-nos afirmar que o currículo do curso de medicina da UMinho tem elementos que contribuem para uma cultura de inovação curricular, desde logo porque integra conhecimento e experiência. Para ocorrer essa integração, o currículo valoriza, dialoga e apropria-se de outros saberes para além dos que se inscrevem na dimensão técnico-científica (saberes éticos, afetividade, experiência-prática...), promovendo uma integração horizontal dos conhecimentos disciplinares e uma integração transversal dos valores e atitudes, como podemos identificar no depoimento de uma aluna:

Estamos a aprender fisiologia e anatomia e quando temos um caso clínico percebemos que o ser humano é mais que isso... questões como ética, relação médico-doente, eutanásia. Também no âmbito da psicologia e psiquiatria. Temos aula para entender essa dimensão pessoal, enquadrada no modelo biopsicossocial (A3).

As unidades curriculares, ao integrarem áreas científicas com as temáticas selecionadas pelo currículo, possibilita um processo de reconfiguração de saberes e o reconhecimento do conhecimento pluriversitário que, como referimos, é um conhecimento contextualizado, na medida em que se produz em função da sua futura aplicação ou utilização (Santos, 2008). Esse reconhecimento constrói-se nas unidades curriculares que desafiam o aluno a ser protagonista da sua aprendizagem, ao desenvolver experiências com a comunidade. A utilização democrática do conhecimento centra o currículo no sujeito e não na técnica, tornando-se um terreno fértil para novas construções epistemológicas, de cariz democrático, intercultural e includente.

Além disso, o currículo prevê a realização de atividades laboratoriais desenhadas para o desenvolvimento de diferentes competências, incluindo as de investigação científica. Existe, portanto, uma clara rutura paradigmática com a hegemonia da racionalidade instrumental do currículo disciplinar e o fortalecimento das unidades temáticas, sem abandono do caráter técnico-científico presente como perspetiva transversal do currículo.

 

Considerações finais

A inovação curricular na universidade requer que se utilizem novas formas de compreender e relacionar com o conhecimento (Cunha, 2008). Além disso, requer uma gestão partilhada dos atos pedagógicos, bem como o recurso a ações reflexivas que permitam reconhecer o conhecimento como algo complexo, passível de reconfigurações, colocando-o como um mediador includente nas relações sócio-afetivas no processo da aprendizagem.

Em jeito de síntese final, importa referir que concluímos que o currículo do curso analisado inova porque reconhece outras formas de produção de saberes (saberes éticos, culturais, populares...), incorpora a dimensão sócio-histórica do conhecimento, incentiva a gestão partilhada dos atos pedagógicos e induz ações reflexivas que permitam compreender o conhecimento médico como algo complexo, passível de reconfigurações, que deve ser (re)construído em cenários de justiça curricular.

No fundo, um conjunto de elementos essenciais para a reforma curricular em curso e para a construção de uma cultura de inovação curricular que, como sugere o Diretor do Curso (2018)[8], permita identificar linhas de atuação e desenvolver “um perfil adequado à medicina do futuro”, um perfil que se nutre de um “excelente raciocínio clínico”, de muita motivação, aprendizagem contínua, uma base científica sólida e um verdadeiro carácter humanista. Um perfil que, na opinião do Diretor (ibidem), permita “transformar aquilo que são os indicadores de resultados em saúde de uma cultura de produção de números para uma cultura de ganhos em saúde”.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para José Carlos Morgado, através do seguinte e-mail: jmorgado@ie.uminho.pt

[2] Cf. Página da EMed. In https://www.med.uminho.pt

[3] A epistemologia, vulgarmente designada por teoria do conhecimento ou filosofia do conhecimento, é um ramo da filosofia que estuda os problemas relativos ao conhecimento humano, refletindo sobre a sua natureza, limites e validade.

[4] Cf. Página da EMed. In https://www.med.uminho.pt 5 Cf. Idem.

[5] A ideia transversalidade surge associada à redefinição do conceito de aprendizagem e à forma como se trabalham os conteúdos com os alunos. Envolve a organização e promoção de conceitos, temas, atitudes e comportamentos em conformidade com os pressupostos das áreas científicas do currículo, sem uma hierarquização vertical absoluta do conhecimento, estimulando a comunicação entre diferentes contextos de aprendizagem.

[6] Cf. Página da EMed. In https://www.med.uminho.pt

[7] Cf. Página da EMed. In https://www.med.uminho.pt

[8] Cf. Página da EMed, Escola de Medicina quer preparar médicos do futuro. In https://www.med.uminho.pt