Artigo
Início e Desenvolvimento de uma Relação de Ajuda Profissional
Sofia Veiga[1]
inED (Centro de Investigação e Inovação em Educação) - Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto
Cristina Vieira[2]
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto
RESUMO
A relação de ajuda, enquanto ferramenta de intervenção privilegiada no trabalho psicossocial, remete-nos para o desenvolvimento de uma relação centrada na pessoa, que a valorize e ajude a desenvolver competências que lhe permitam empoderar-se e emancipar-se. O início de uma relação de ajuda poderá determinar o rumo da intervenção sendo, portanto, fundamental que o profissional reflita sobre o seu papel, o papel do outro, da relação e do contexto de intervenção. O artigo em apreço procura, através da análise de um caso, refletir sobre as especificidades de uma relação de ajuda na sua fase inicial, nomeadamente, as especificidades dos primeiros encontros, a explicação da intervenção a realizar, a aliança terapêutica e os processos de vinculação e de separação-individuação no desenvolvimento da relação de ajuda. O caso apresentado aconteceu entre uma profissional de um serviço de Rendimento Social de Inserção e um adulto que vivia só e com graves carências aos mais variados níveis. A intervenção foi realizada no domicílio do sujeito, assim como no quotidiano institucional. A postura evidenciada pela profissional nos primeiros contactos potenciou o desenvolvimento de uma relação de confiança, a qual permitiu que o sujeito se fosse envolvendo e comprometendo com o seu processo de mudança pessoal.
Palavras-chave:
Relação de ajuda; fase inicial; empoderamento; emancipação
ABSTRACT
A helping relationship is a privileged tool of intervention in the psychosocial work. It brings us to the development of relationship centred on the person, which values and helps to develop competencies that allow the person to empower and emancipate oneself. The beginning of a helping relationship could determine the intervention’s course. Therefore, it is fundamental that the professional reflects about its role, the other’s role, the relationship and the intervention context. Through the analysis of a case, this article searches to reflect about the specificities of an early-stage helping relationship, namely the specificities of the first encounters, the explanation of the intervention to do, the therapeutic alliance and the attachment and separation-individuation processes in the development of the helping relationship. The presented helping relationship case happened between a professional of a service of Social Income of Insertion and an adult that lived alone with serious needs at the most varied levels. The intervention was carried out in the adult's home, as well as in the daily institutional life. The posture evidenced by the professional in the first contacts allowed the development of a trust relationship and, therefore, empowered the adult to be involved and compromised with his change process.
Keywords:
Helping relationship; early stage; empowerment; emancipation
Relação de Ajuda: Breve Enquadramento Teórico
A relação de ajuda é uma relação profissional na qual “(...) pelo menos uma das partes procura promover na outra o crescimento, o desenvolvimento, a maturidade, um melhor funcionamento e uma maior capacidade de enfrentar a vida (...)”, podendo ser o outro “(...) quer um indivíduo, quer um grupo” (Rogers, 1961/1985, p. 43). Enquanto ferramenta de intervenção privilegiada no trabalho psicossocial, remete-nos para o desenvolvimento de uma relação centrada na pessoa (Rogers, 1961/1985), que valoriza o ser humano e o ajuda a desenvolver competências que lhe permitam assumir o seu «poder pessoal» (Rogers, 1977/1989). O profissional de relação de ajuda - seja este um educador social, psicólogo, enfermeiro, educador, entre outros considerados profissionais de proximidade - deverá, neste sentido, perspetivar a pessoa ajudada como alguém com potencialidades e que, apesar das dificuldades evidenciadas, “tem a melhor e mais criativa resposta para o seu problema, e com ela a capacidade de a atualizar, se lhe forem possibilitadas as condições necessárias para tal” (Hipólito, 2011, p. 37).
No processo de intervenção, a pessoa vai, na e pela relação, tomando consciência de si, da sua situação de incongruência e/ou vulnerabilidade, dos seus sentimentos e experiências. A relação estabelecida, tendo por base uma comunicação interpessoal genuína, vai procurar o desenvolvimento de sentimentos de confiança e de congruência entre o profissional e o sujeito, em prol da mudança almejada. Rogers (1961/1985, p. 55) relaciona a congruência com uma atitude de transparência sustentada da seguinte forma: “(...) se nenhum sentimento referente a esta relação é escondido quer a mim próprio quer ao outro, posso estar então quase seguro de que se tratará de uma relação de ajuda (...)”.
A par da congruência, a empatia e a capacidade de aceitar o outro tal qual como é - não o julgando, não se impondo como modelo nem criando um relacionamento de dependência – são as três condições essenciais elencadas pelo autor referido para que uma relação de ajuda possa ser bem-sucedida. Não obstante, muitos outros fatores podem condicionar o desenvolvimento de uma relação de ajuda profissional, sendo que, no artigo em apreço, refletiremos sobre aqueles que afetam a mesma na sua fase inicial. Para esta reflexão, mobilizaremos conteúdos de várias abordagens teóricas - do domínio da Psicologia, mas também da Sociologia – que permitem apreender de que forma um processo de relação de ajuda se pode desenvolver, no e pelo quotidiano, numa prática profissional que se quer de proximidade em prol do empoderamento e emancipação do sujeito.
José: Um Caso de Relação de Ajuda
Tendo em conta que o trabalho em apreço procura estudar a temática em foco, optámos por fazê-lo através da análise e compreensão aprofundada de um único caso. A decisão pelo estudo de um caso único ou singular sustentou-se nas potencialidades de investigação, descrição e compreensão em profundidade que o estudo de caso proporciona (cf., Bogdan & Biklen, 1994; Lessard-Hébert, Goyette, & Boutin, 1994).
Segue-se, então, a descrição do caso, sendo que a sua análise, centrada nas especificidades de uma relação de ajuda na sua fase inicial, acontecerá ao longo da discussão.
José[3] tem atualmente 47 anos. Entre 2014 e 2016 viveu sem auferir de qualquer apoio social devido à falta de comparência a convocatórias e a incumprimentos vários. No sentido de obter ajuda para requerer um apoio social que pudesse suprimir algumas das suas necessidades básicas, foi encaminhado, em março de 2016, para uma Associação que acompanhava pessoas/famílias beneficiárias do RSI.
José apresentou-se nos serviços da Associação com sinais de negligência e de descuido em relação a si próprio, nomeadamente ao nível da higiene. No primeiro atendimento, evidenciava alguma ansiedade decorrente da sua situação atual de grande fragilidade económica. Contou à profissional que o acolheu alguns dos seus problemas atuais, fruto de se encontrar sem rendimento há cerca de dois anos.
Angustiado, referiu que a sua casa de habitação social se encontrava sem água, sem luz e infestada de insetos e parasitas, correndo ainda o risco de ser despejado por não pagar a renda há mais de dois anos.
Na tentativa de compreender o seu percurso de vida, a profissional incentivou o sujeito a falar um pouco de si, reassegurando-o, desde logo, sobre a confidencialidade e a liberdade do espaço de atendimento. No primeiro encontro e nos seguintes, consoante foi adquirindo confiança na profissional, José contou que viveu grande parte da sua vida numa freguesia de uma cidade do norte do país, com os seus pais. Uma vez que nunca se casou, viveu com os mesmos até estes falecerem, há seis anos atrás, altura em que se torna dependente de substâncias tóxicas. Foi acompanhado num serviço especializado, tendo sido posteriormente integrado numa comunidade terapêutica. Foi através desta que adquiriu a casa onde ainda reside atualmente. Sem retaguarda familiar ou outras redes de suporte, nem atividade laboral, após a sua saída da comunidade terapêutica voltou a consumir.
Perante a história de vida de José - pautada pelo isolamento social, o desemprego de longa duração e o abuso de substâncias tóxicas - a profissional considerou que este necessitava de um acompanhamento mais próximo e de atenção cuidada, que não teria caso fosse encaminhado para a Segurança Social, como era habitual em situações similares, de acordo com a política da Associação.
A intervenção realizada inicialmente procurou satisfazer algumas das necessidades básicas identificadas desde logo pelo sujeito. Uma vez que se encontrava sem documentação pessoal, comprometeu-se a requerer, juntamente com a profissional, um atestado de pobreza e um novo cartão de cidadão de forma gratuita. Incentivado pela profissional, identificou, de seguida, as dimensões da sua vida que considerava de maior vulnerabilidade e de mudança prioritária. A habitação e a saúde foram as áreas evidenciadas. Sem julgamentos e numa atitude de aceitação e compreensão, a profissional auxiliou José a fazer um parcelamento das dívidas relativas à habitação, água e luz. Seguidamente, abordaram o acompanhamento médico, tendo o sujeito tomado consciência de que, desde que saíra da comunidade terapêutica, não era acompanhado em nenhum local. Com o consentimento de José, a profissional conseguiu que o mesmo tivesse acompanhamento médico familiar, ficando à sua responsabilidade a articulação dos serviços de saúde. Apesar de motivado para trabalhar esta dimensão da sua vida, a marcação da primeira consulta num serviço de saúde especializado para o tratamento de dependências prolongouse por seis meses. Mesmo sem medicação, José conseguia organizar-se e ter períodos de abstinência. A relação de proximidade e de confiança que estabeleceu com a profissional parecia ajudá-lo a lidar e a tolerar as frustrações decorrentes de todo este processo. Neste período, começou a frequentar o Centro Comunitário da Associação, o que lhe permitia manter-se ocupado e desenvolver algumas competências e relações. O contacto com a profissional era então diário, evidenciando-se esta como uma pessoa de referência para José. Este contacto poderia ser apenas um cumprimento ou uma palavra, para que não se sentisse desamparado e sozinho no seu processo de recuperação. A par destes momentos, a profissional visitava-o uma vez por semana no seu domicílio, sempre com aviso prévio.
No decorrer do acompanhamento no seu quotidiano institucional e habitacional, a profissional motivava-o a pensar sobre os seus problemas e a tomar consciência das consequências dos seus atos. Neste sentido, José considerou que o melhor para si seria o internamento, uma vez que não queria continuar uma vida de dependência. A profissional acompanhou o sujeito à primeira consulta, tendo ficado surpreendida quando percebeu o descrédito do profissional de saúde na recuperação de José e testemunhou a recusa de internamento do mesmo por este apresentar uma doença infeciosa. Neste momento, o suporte emocional da profissional revelou-se essencial para a não desistência do sujeito em relação ao seu processo de recuperação.
Nesta mesma fase, a profissional conseguiu que a casa fosse desinfestada. Durante três dias, José teve que sair da mesma, ficando numa pensão. Após o seu regresso, a profissional, em conjunto com José, conseguiu que este beneficiasse de um serviço de refeição em takeaway, a custo zero, colmatando, assim, as suas carências alimentares.
Após esta fase inicial, em que se procurou estabelecer uma relação de confiança e intervir na resolução de problemas urgentes identificados pelo sujeito em conjunto com a profissional, o acompanhamento prosseguiu, doravante com outros objetivos.
Discussão
O início de uma relação de ajuda, fase designada por Chalifour (2008), de orientação da relação, ou, por Soriano (1995), de configuração do encontro pessoal, tem especificidades que a caracterizam. Tendo por base o caso apresentado, refletirse-á sobre os primeiros encontros, o processo de explicação da relação de ajuda, as especificidades do desenvolvimento inicial deste tipo de intervenção psicossocial, a aliança terapêutica e, por fim, os processos de vinculação e de separaçãoindividuação no desenvolvimento da relação de ajuda [4].
Construção de uma Relação de Ajuda: Especificidades dos Primeiros Encontros
O primeiro contacto que se estabelece entre profissional e sujeito revela-se de extrema importância, já que o modo como este se desenvolve poderá condicionar de forma positiva ou negativa a intervenção. Dewald (1989) considera que o tempo de espera e a forma como a primeira entrevista/encontro é marcada/o poderão ter influência nas expectativas de superação dos problemas de quem procura/almeja ajuda. Deste modo, sempre que possível, o primeiro contacto deve ser marcado num curto espaço de tempo, o que, por sua vez, demonstrará, por parte do profissional, sensibilidade perante os problemas da pessoa. Esta postura de atenção e consideração de que fala o autor contribui para a criação de uma ligação e, consequentemente, para o estabelecimento de uma relação de confiança entre ambos os intervenientes.
O primeiro contacto estabelecido entre José e a profissional desenvolveu-se no âmbito de uma convocatória da Segurança Social, que tinha como objetivo analisar a situação pessoal e social do sujeito a fim de se perceber se este reunia as condições necessárias para ser beneficiário do RSI. No primeiro encontro, José encontrava-se angustiado e ansioso. Não obstante, a postura de interesse, de atenção, de aceitação e de empatia revelada pela profissional permitiu que este falasse abertamente das suas questões e problemas vivenciados no momento, possibilitando à primeira perceber a sua vulnerabilidade atual, a necessidade da prestação de RSI e, sobretudo, de um acompanhamento regular e de proximidade que o ajudasse efetivamente no seu processo de mudança e de autonomização.
Desde o primeiro contacto e ao longo da construção de uma relação de ajuda, a pessoa deve ser estimulada a assumir uma atitude pró-ativa de participação. O profissional deve, neste processo, criar um clima de confiança que impulsione a pessoa a se expressar livremente (Chalifour, 2008; Dewald, 1989; Rogers, 1961/1985), como aconteceu no caso de relação de ajuda apresentado, já que a profissional tentou criar, desde logo, um ambiente contentor, livre de julgamentos, que motivasse José a participar ativamente no seu processo de emancipação pessoal e social. Esta participação, não obstante, foi acontecendo de forma gradual, resgatando aos poucos o sujeito de uma relação de dependência e de passividade comportamental.
O Processo de Explicação da Relação de Ajuda
No início de uma relação de ajuda é fundamental que o profissional tente compreender, junto da pessoa, quais as suas expectativas e o que sabe sobre o processo de acompanhamento. Após a escuta atenta deste, o profissional deve ter a capacidade de explicar ao sujeito quais as abordagens que serão ou poderão ser utilizadas na construção de uma relação que tem como objetivo emancipar a pessoa ajudada. Por outras palavras, o profissional deve explicar à pessoa o processo de relação de ajuda, ou seja, a frequência, a duração e o/s local/locais dos encontros, as possibilidades de ajuda, o papel de cada um, e, sobretudo, a importância de co construírem uma relação de confiança.
A pessoa que solicita ajuda tem expectativas várias, mais ou menos precisas. Uma dessas expectativas relaciona-se, como refere Chalifour (2008), com a representação que tem acerca do seu papel, bem como do papel do profissional. Assim, no(s) primeiro(s) encontro(s), a pessoa deve expor as suas perceções com o intuito de se clarificarem os papéis que cada interlocutor pode e deve assumir no estabelecimento da relação e ao longo da intervenção.
A forma como o profissional explica o processo de intervenção ao sujeito é, de acordo com Dewald (1989), igualmente importante. Se, por exemplo, o sujeito demonstra alguma fragilidade emocional que careça de uma figura de apoio e de suporte, a explicação pode ser dada no sentido de enfatizar que o profissional é uma pessoa de confiança que o ajudará a emancipar-se. Se o sujeito se mostrar uma pessoa independente, o profissional deverá centrar as suas explicações no sentido de enfatizar as competências do mesmo que lhe permitirão superar os seus problemas. Acima de tudo, o profissional deve apoiar a pessoa na expressão da sua necessidade de ajuda e na busca das suas causas e possibilidades de mudança, ajudando-a a perceber quais os recursos humanos e físicos à sua disposição (Chalifour, 2008).
Remetendo os contributos expostos anteriormente para o caso de relação de ajuda apresentado, é possível compreender que houve, da parte da profissional, o cuidado de explicar a José como se desenvolveria o seu acompanhamento na Associação. No caso de o seu processo de RSI ser deferido, passaria a ser acompanhado e ajudado no seu processo de emancipação. Este processo de acompanhamento teria a duração de, pelo menos, um ano, no qual tentaria, em conjunto com José, colmatar alguns dos problemas por ele identificados ao nível da habitação, da alimentação e da dependência de substâncias tóxicas. Desde logo alertou-o para a possibilidade/ necessidade de ter de contactar outras entidades, disponibilizando-se a mediar este processo. Esta postura de atenção demonstrada pela profissional e a forma como a mesma se mostrou na relação contribuíram para que José aceitasse a intervenção proposta e começasse a perspetivar e a sentir a profissional como uma figura de apoio e de suporte, essencial para se comprometer no seu processo de mudança pessoal.
A emancipação de José foi sobretudo fomentada pela relação de proximidade que se estabeleceu entre ambos. Uma relação diária, pouco comum no âmbito de serviços do RSI. José dirigia-se todos os dias à Associação com o propósito de contactar com a profissional, sua única figura de suporte. Na sua maioria, os encontros eram breves, mas davam ao sujeito o sentimento de não estar só e permitiam que a profissional, no quotidiano institucional, o valorizasse e encorajasse a assumir um papel ativo na sua recuperação.
Note-se que o trabalho no e pelo acontecimento quotidiano é, de acordo com a Sociologia da Vida do Quotidiano (Machado Pais, 2002), de grande relevância, já que permite perceber o modo como o indivíduo interage com o meio social e como este o influencia. O profissional ao conhecer o quotidiano social do(s) sujeito(s), os seus comportamentos em contexto natural, pode melhor compreender os seus problemas, potencialidade e recursos e, assim, proceder a uma intervenção psicossocial mais sustentada e ajustada.
No início e durante o processo de intervenção, o profissional deve acreditar no potencial do sujeito para se desenvolver e emancipar. Não obstante, deve ter, como refere Dewald (1989), uma atitude de sinceridade sobre as reais possibilidades de mudança e evolução da pessoa, não lhe depositando expectativas positivas inviáveis ou irrealistas. Perante o sofrimento e o esforço demonstrados pela pessoa, o profissional deverá valorizá-la e motivá-la a continuar o seu processo de mudança, podendo, caso considere pertinente, compartilhar com a mesma que outros indivíduos nas mesmas condições tiveram sucesso, fomentando assim a esperança (Yalom, 2000). Não obstante, deve ter o cuidado de aludir que cada pessoa é singular e este sucesso depende de inúmeros fatores.
A clarificação das qualificações dos profissionais é um aspeto que pode ser relevante quando se inicia uma intervenção, ao permitir que o sujeito se torne mais consciente sobre as áreas e possibilidades de intervenção, e mais seguro na relação e no papel que é desafiado a desenvolver. O profissional deverá, então, responder sempre com a máxima sinceridade já que o sujeito poderá, através de outras fontes de informação, ter acesso às suas qualificações profissionais. Caso seja questionado sobre elas, o profissional de relação de ajuda deverá ter a capacidade de compreender o significado das questões. Se as perguntas não surgirem no início da relação, há que tentar decifrar, em conjunto com a pessoa, a origem da questão naquele momento, ajudando-a “a reconhecer que pode haver outros significados préconscientes ou inconscientes por trás da pergunta” (Dewald, 1989, p. 168). No caso descrito, a profissional, aquando o acolhimento inicial, apresentou-se e explicitou brevemente o seu papel e funções na Associação. Como referido já, a clarificação destes permitiu que José se revelasse e evidenciasse expectativas de ajuda nas áreas em que a mesma estava habilitada a atuar, o que permitiu que a intervenção fosse perspetivada e desenvolvida com maior ajustamento e realismo.
Especificidades do Desenvolvimento da Relação de Ajuda
Após esclarecidas as questões relativas ao desenvolvimento de uma relação de ajuda, devem ser traçados, como refere Soriano (2005), objetivos de trabalho, para que se possa desenvolver um trabalho coerente com vista à autonomização da pessoa. Neste trabalho é possível observar-se um conjunto de etapas. A primeira delas refere-se à abertura que deve ser oferecida aos sujeitos para se explorarem e refletirem sobre a sua realidade, “(...) tendo coragem para a enfrentar, porque exigese estar aberto ao crescimento, ao conhecimento e, consequentemente, à mudança” (Guerra & Lima, 2005, p. 78). A segunda etapa diz respeito à confiança que deverá ser promovida no sujeito em relação a si próprio, para que, posteriormente, seja capaz de se tornar autónomo nas suas decisões “(...) em vez de procurar a aprovação social e, assim, tomar decisões para os seus padrões de comportamento” (Guerra & Lima, 2005, p. 78). A última etapa remete-nos para o facto de o ser humano estar em constante crescimento pessoal e social, o que pressupõe que o mesmo tenha a capacidade de se adaptar às constantes mudanças que a vida lhe apresenta (Guerra & Lima, 2005).
A periodicidade dos atendimentos/encontros apresenta-se como um fator importante para a construção de uma relação de ajuda. De acordo com Rogers (1961/1985), os encontros deverão ser frequentes e regulares para que seja possível a construção de uma relação de proximidade e de confiança, essencial para que o sujeito faça um investimento emocional significativo no profissional e no seu processo de mudança.
Como já foi referenciado anteriormente, inicialmente havia um contacto bastante próximo e regular. A profissional visitava semanalmente José no seu domicílio, com aviso prévio, agendava atendimentos na Associação com alguma regularidade e estava com o sujeito diariamente no quotidiano do Centro Comunitário. Este contacto próximo e sistemático permitiu que a relação se fosse desenvolvendo e José se mostrasse implicado na resolução dos seus problemas de abuso de substâncias tóxicas e na reorganização da sua vida.
No desenvolvimento de uma relação de ajuda, os profissionais devem estar cientes de que, no que concerne à marcação e/ou comparência aos atendimentos/encontros, poderão existir pessoas que apresentem determinadas resistências, não querendo estar presentes, por considerarem, por exemplo, que o trabalho desenvolvido não apresenta os resultados esperados ou exige esforços que não estão dispostos a realizar. Por outro lado, poderão existir sujeitos que desejem e/ou necessitem de uma maior regularidade no acompanhamento, como foi o caso de José. Neste sentido, é essencial que cada profissional esteja atento e seja sensível às necessidades de cada sujeito, respeitando os seus ritmos e resistências.
A construção e o desenvolvimento de uma relação de ajuda são influenciados por diversos fatores. Além dos referidos anteriormente, há um conjunto de outros fatores que determinam a qualidade da relação e da intervenção realizada. Um desses fatores é relativo à confidencialidade. Para que haja confiança e honestidade por parte do sujeito, o profissional deverá deixar claro, desde o início, que os assuntos entre eles conversados são de carácter confidencial. Outro fator é o contexto físico. Consoante os casos e/ou os momentos, a relação de ajuda pode ser desenvolvida em diferentes contextos. Em contexto de atendimento em gabinete, o ambiente deverá ser confortável, sem ruídos e com confidencialidade. Já na realidade quotidiana, seja da instituição seja da realidade pessoal dos sujeitos, o processo relacional desenvolverse-á de forma mais livre e espontânea. No caso apresentado, a relação de ajuda foi desenvolvida quer em situação de gabinete, quer no quotidiano institucional, quer no domicílio de José. Outro fator ainda que poderá influenciar a construção de boas relações é a postura de atenção do profissional, caso este tire apontamentos relativamente ao que é dito pelo sujeito. Em relação a este ponto, Dewald (1989) atenta que, se por um lado, poderão existir pessoas que considerem uma falta de respeito o ato de tirar apontamentos enquanto estão a falar, por outro lado, poderão existir outras que considerem que um profissional que não tire apontamentos não é interessado e dedicado na intervenção. Mais uma vez se apela à sensibilidade do profissional para a especificidade do indivíduo ajudado.
Aliança Terapêutica e Relação de Ajuda
Quando pensamos no que contribui para a construção de uma aliança terapêutica de qualidade temos que considerar que esta se apresenta como um processo dinâmico e complexo onde interagem o papel do profissional, o papel do sujeito e as características da relação estabelecida entre ambos.
O conceito de aliança terapêutica diz respeito à qualidade da relação que é estabelecida entre profissional e sujeito, bem como à cooperação que se institui entre ambos (Ribeiro, 2009). Este conceito tem a sua influência na psicanálise e nas ideias de transferência positiva referidas por Freud, as quais se relacionam com a ligação/vinculação que se estabelece entre a pessoa e o profissional (Horvath & Bedi, 2002, citados por Ribeiro, 2009).
Alguns conceitos ligados à perspetiva humanista têm sido, também, associados ao conceito de aliança terapêutica. Esta, mobilizando as já referidas condições necessárias para o desenvolvimento de uma relação de ajuda, assume-se como um constituinte de ligação emocional fundamental para ativar, manter e reforçar os movimentos de autonomia e de emancipação da pessoa (Ribeiro, 2009).
É de salientar que a construção de uma aliança terapêutica não é imediata, mas gradual. A forma como esta acontece vai afetar o sucesso da própria intervenção. Bordin (1994, citado por Abreu, 2005) sugere que o profissional deve dar especial atenção aos seus métodos e postura para que a aliança se desenvolva o mais depressa possível, tal como acontece no caso de relação de ajuda que é apresentado, onde podemos observar que, de facto, há desde logo uma aproximação entre a profissional e José, talvez motivada pela urgência e pela premência da intervenção, bem como pelo facto de a profissional se assumir como figura de vinculação e de suporte para o sujeito.
Neste processo, e de acordo com Ribeiro (2009), o profissional deve procurar envolver o sujeito como coparticipante. Apesar de haver pessoas que procuram ajuda, tal não significa que estejam predispostas a ter um papel ativo na sua mudança. Assim, os profissionais devem possuir e/ou desenvolver algumas competências para conseguirem estabelecer uma aliança terapêutica e levar a cabo uma relação de ajuda. A disponibilidade emocional, a presença securizante, a capacidade de regulação do afeto, o conforto, o cuidado, a proximidade íntima, a responsividade, a aceitação incondicional, a genuinidade e a empatia são competências do profissional que facilitam a expressão das potencialidades do sujeito (eg., Holmes, 2011; Mallinckrodt, Porter, & Kivlighan, 2005; Rogers, 1961/1985; Veiga, Bertão, & Franco, 2011). Este, por seu lado, deve estar aberto e disponível para que, participando de um clima relacional colaborativo, a sua experiência subjetiva e a sua voz possam ser expressadas, escutadas e valorizadas (Ribeiro, 2009).
No caso em análise, são evidentes as competências apresentadas pela profissional que acompanhou José. Apesar de todas as complicações associadas à vida do sujeito, em especial o consumo de substâncias tóxicas, a profissional demonstrou sempre uma atitude de aceitação, de cumplicidade e de apoio incondicional, nunca desistindo ou desacreditando que José conseguiria emancipar-se. A atenção, sensibilidade e dedicação evidenciadas constantemente pela profissional levaram José a cooperar na relação e a participar na construção da sua mudança, tendo esta fase inicial apresentado já resultados consideravelmente positivos.
Porque este é um processo exigente, é essencial que o profissional reflita sobre si, sobre o seu comportamento e a influência que o mesmo tem na construção da relação de ajuda com a pessoa (Rogers, 1961/1985; Veiga, Bertão, & Franco, 2011), sendo sempre que possível, coadjuvado, nesta análise, por outros profissionais, em situação de intervisão ou de supervisão.
O processo de Vinculação e de Separação-Individuação no Desenvolvimento da Relação de Ajuda
A construção de uma aliança terapêutica é condicionada pelos estilos de vinculação. De acordo com Ribeiro (2009), a forma como os sujeitos avaliam as características dos profissionais, para a construção de uma relação, está intimamente ligada à forma como os mesmos se relacionaram/relacionam com outras figuras de outros contextos e nestes adquiriram/adquirem representações de si e dos outros. De particular importância evidenciam-se as experiências de vinculação desenvolvidas na infância (Bowlby, 1979/1990).
A vinculação, segundo Fleming (2005, p. 21), “responde à necessidade primária de criar ligações afetivas, de apegar-se a outros seres humanos, como meio de assegurar segurança e proteção”. Ao longo da vida, as vinculações primárias mantêmse e os seres humanos vão encontrando novas relações de vinculação e afetividade (Fleming, 2005). Na adultez, a existência de figuras de vinculação continua a ser essencial para o bem-estar e saúde mental da pessoa. Como refere Weiss (1975, 1978, 1979, citado por Soares, 1996), quanto maior a proximidade e disponibilidade da(s) figura(s) de vinculação, menores são os sentimentos de ansiedade e maiores são os sentimentos de conforto e de segurança. Neste sentido, é essencial que o profissional seja capaz de desenvolver com as pessoas uma base segura para que as mesmas possam ter coragem de (se auto) explorarem (Bowlby, 1988).
Os sentimentos de segurança e de confiança associados à vinculação, associamse, de igual forma, ao processo de separação-individuação, sendo este o alicerce para o desenvolvimento da autonomia e para a construção da autoestima e da autoconfiança. Veiga (1997) e Fleming (2005) afirmam que a vinculação e a separação-individuação caminham juntos e potenciam-se mutuamente. Fleming (2005) acrescenta, ainda, com base nas investigações empíricas que têm sido desenvolvidas no âmbito desta temática, que os adultos com maior capacidade de separação-individuação, são aqueles que apresentam maior bem-estar, capacidade de adaptação e segurança, características motivadas pelas relações de vinculação precoces.
Como se destaca no caso de relação de ajuda apresentado, a intencionalidade da profissional passava por construir uma relação de ajuda segura com José que pudesse suprimir alguns problemas de maior urgência e que o motivasse a refletir sobre a sua vida, os seus recursos, com vista à sua autonomização para um futuro com liberdade de escolha, responsabilidade pelas ações que realiza e sem a necessidade de ajuda.
Conclusão
As reflexões que foram sendo apresentadas ao longo do artigo demonstram que iniciar e desenvolver uma relação de ajuda de qualidade exige atentar a variados aspetos relacionados com o profissional, a pessoa, a relação e o contexto. Cabe sobretudo ao profissional assumir uma postura de cuidado, de atenção, “despida de preconceitos e fachadas e aberta a uma autêntica comunicação” (Guerra & Lima, 2005, p. 77), que lhe permita construir, de uma forma consistente e refletida, a mudança com o sujeito. Neste processo, o profissional deve ter a capacidade de se descentrar do poder que lhe é, à partida, instituído, e dar voz ativa à pessoa ou ao grupo, acreditando e valorizando as suas competências para identificar e resolver os problemas e necessidades vividos, em prol de um maior desenvolvimento e autonomização.
Porque esta ferramenta de intervenção é essencialmente relacional, o profissional deverá assumir, desde o início e ao longo de toda a relação de ajuda, uma atitude reflexiva sobre as suas posturas e práticas profissionais, ajustando-se ao outro e com ele crescendo. Como refere Rogers (1961/1985, p. 59) “a minha capacidade de criar relações que facilitem o crescimento do outro como uma pessoa independente mede-se pelo desenvolvimento que eu próprio atingi”.
Por fim, gostaríamos de salientar que, apesar de haver especificidades e cuidados particulares na fase inicial de uma relação de ajuda, ao ser um processo contínuo, muitas das tarefas e preocupações presentes nesta fase prolongam-se, como refere Chalifour (2008), durante toda a relação e até ao final da intervenção.
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[1] Doutorada em Psicologia, e-mail: sofiaveiga@ese.ipp.pt
[2] Mestranda em Educação e Intervenção Social, especialização em Ação Psicossocial em Contextos de Risco; e-mail: cristinamariasvieira@gmail.com
[3] O nome da pessoa acompanhada e alguns dados da sua história particular foram alterados com o intuito de assegurar a confidencialidade da identidade mesma.
[4] Em outras situações de relação de ajuda, nomeadamente nas que decorrem no quotidiano de uma vivência institucional (ex., Lar de Infância e Juventude), as dimensões que neste artigo são abordadas e refletidas podem não ocorrer da mesma forma.