Full Article

O acolhimento familiar na literatura infantil: histórias de violência com um final feliz

Paulo Delgado

Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

Rosa Marí Ytarte

Universidad de Castilla La Mancha

RESUMO

A mediação ou intervenção social é, por inerência, um processo educativo, que visa a transformação e o desenvolvimento social. No decurso desse processo, o educador tem o livro ao seu dispor, um recurso pedagógico poderoso, quando utilizado de um modo planificado, refletido e partilhado. Este artigo pretende identificar e descrever a presença dos maus tratos infantis e do acolhimento familiar num grupo de livros de literatura infantil. Inicialmente faz-se um enquadramento teórico que remete nomeadamente para conceitos como maus tratos, impacto da violência doméstica nas crianças, e o acolhimento familiar, enquanto formas de proteção das crianças e jovens em perigo. Prossegue descrevendo o modo como um grupo de histórias de literatura infantil faz a narrativa destas realidades e como podem ser utilizadas na formação de educadores, junto de outros adultos ou de crianças e jovens. É nossa intenção refletir, em concreto, sobre aspetos essenciais como a gestão das memórias e do percurso da criança no sistema de acolhimento, a violência e a separação da família de origem, os sentimentos associados ao decurso do acolhimento, aos contactos com os pais, e os desafios para o futuro, pondo simultaneamente em relevo a forma singela, eficaz e sensível como o livro (nos) educa.

Palavras-chave: mau trato infantil, acolhimento familiar, literatura infantil

ABSTRACT

Mediation or social intervention is inherently an educational process, who looks for social transformation and development. In the course of this process, the educator has the book at his disposal, a powerful pedagogical resource when used in a planned, reflected and shared way. This paper aims to reflect on the presence of child abuse and foster care in children's literature. Initially, we introduce a theoretical framework which address to concepts such as child abuse, the impact of domestic violence on children, and foster care, as a way of protecting children and young people in danger. Then we describe how a group of children's literature stories narrates these realities and how can be used in educational processes and social intervention, in training of social workers or social educators, and to connect with children and young people or other adults. It is our intention to reflect, in particular, on essential aspects such as the management of memories and the child's journey in out-of-home care system, violence and separation of the family of origin, feelings associated with the placement, contacts with parents, and the challenges for the future, while emphasizing the simple, effective and sensitive way the book educate (us).

Keywords: child abuse, foster care, picture books for children

1. A literatura infantil como ferramenta educacional: violência, narração e experiência

De acordo com a Estratégia do Conselho da Europa para os Direitos da Criança (2016-2021), uma das linhas básicas de trabalho para garantir esses direitos passa pela proteção da violência, em qualquer de suas formas. O próprio Conselho reconhece que este direito é violado diariamente na Europa, apesar dos 25 anos desde a assinatura da Convenção sobre os Direitos da Criança. Este documento descreve essas ações, muitas vezes padronizadas em comportamentos quotidianos e nas formas de relacionamento com as crianças, que implicam claramente um tratamento humilhante e que tem a ver com maus-tratos, punição corporal, assédio, abuso sexual, exploração, abandono e abandono ou falta de proteção legal, entre outros (2016).

A tendência comum é pensar na violência contra as crianças como casos extremos ou acontecimentos estranhos às democracias europeias. Nada está mais longe da realidade. No manual para jovens sobre a educação em direitos humanos que se intitula COMPASS (2017), publicado pela primeira vez em 2002 e atualizado em 2015 (https://www.coe.int/es/web/compass), pode-se constatar na seção sobre infância na Europa que as crianças do continente enfrentam múltiplas formas de violência dentro da família, devido ao risco de pobreza e exclusão social, que atinge 19% da população infantil; por discriminação ou também por abandono, pois mais de 626.000 crianças vivem em instituições residenciais nos 22 países que compõem a Europa Central e Oriental e a Comunidade de Estados Independentes (p.8). A Agenda para o Desenvolvimento Sustentável para 2030 reconhece a erradicação da violência contra as crianças no mundo como um dos princípios básicos de ação para o desenvolvimento (https://unctad.org/meetings/ es/SessionalDocuments/ares70d1_es.pdf).

A vivência da violência nos primeiros estágios da vida envolve uma situação de desamparo e solidão radical, visto que essas situações de violência ocorrem na idade de dependência dos adultos, que são os que, em muitos casos, aqueles que não estão em posição de proteger as crianças sob seus cuidados. A violência também é institucional se entendermos que os sistemas de proteção não protegem adequadamente as crianças.

Por essa razão, a maior parte dos países com uma economia industrial ou pós industrial concluíram que o acolhimento institucional deve ser usado em situações excecionais para crianças e essencialmente para crianças mais velhas ou jovens com problemas de saúde mental ou outras necessidades especiais (Courtney & Iwaniec, 2009). O acolhimento de crianças deve dar prioridade a respostas de matriz familiar, nomeadamente ao acolhimento familiar, que consiste nos cuidados prestados na casa do cuidador, de forma permanente, através da mediação de uma autoridade reconhecida, por cuidadores específicos, que podem ser familiares ou não de uma criança (diferentemente definida em diferentes países) que pode ou não ser oficialmente residente com eles (Colton & Williams, 1997, p. 292).

Como educadores, e diante da experiência da violência e das suas consequências, que ferramentas temos para construir com a criança maltratada uma forma positiva de relacionamento com o mundo e consigo mesmo? Um relacionamento que se baseie novamente na confiança?

A literatura, as histórias contadas, lidas ou ouvidas, podem ser uma dessas ferramentas. Acreditamos que uma das mais importantes. As histórias na infância são construtoras de significado e identidade e, do ponto de vista educacional, são um meio de abordar as experiências mais difíceis numa idade precoce, quando elas ainda não podem ser compreendidas ou expressas por intermédio de uma narrativa organizada.

2. A INFÂNCIA COMO TERRITÓRIO (DES) PROTEGIDO

A leitura, entre outras ações humanas, é uma ação de conhecimento e prazer que, entre outras funções, nos coloca em "relação com a vida" (Magris, 2001, p. 27), a partir de uma experiência subjetiva e particular. A literatura em geral, e especificamente a literatura infantil, será uma das formas de aceder à experiência humana e social em toda a sua complexidade. Por muitas eras, talvez tenha sido o único meio disponível para o fazer, através de narrações orais e histórias contadas.

A atividade cognitiva, emocional e social que as crianças realizam através de histórias relaciona-se com a experiência e a construção da subjetividade, assim como com a criatividade e a aprendizagem de conhecimento a partir do qual cada leitor constrói significados reflexivos ligados às próprias experiências. Narrativas e histórias agem como «simuladores» do mundo real ou imaginado. Além disso, as histórias transmitem uma imagem do mundo e as relações a partir das quais se elaboram princípios éticos que reconstroem a realidade de uma pessoa, enquanto abrem outras possibilidades de vida.

Portanto, é necessário, antes de tudo, situar-nos nas ideias ou modelos dominantes sobre o que constitui a infância como um período de construção da identidade. Em segundo lugar, relacionar essa ideia de infância com a violência e/ ou agressividade em relação à ficção e, por fim, estudar uma seleção de narrativas a partir da mesma perspetiva: do modelo da infância e do modelo da violência (ou não violência) que as narrações ajudam a desconstruir.

Em relação à primeira das questões e como uma primeira aproximação, partimos da ideia de infância de Bárcena (2003) na qual se destaca o valor da aprendizagem, a experiência de aprendizagem na medida em que não é disciplinada e é construída através do jogo e da improvisação. Nessa perspetiva, a leitura e as histórias serão espaços da infância que se desdobram como um jogo aberto e inesperado aos acontecimentos. Ou seja, a leitura é vista como uma experiência divertida, desinteressada e significativa em si. Por sua vez, a infância é tida como um período em que as histórias e as leituras não são direcionadas para objetivos, princípios ou conteúdos educacionais pré-estabelecidos, mas se referem ao presente, à experiência e à imaginação da própria criança.

Em relação à questão da violência, autores como Mafessoli (2005), Miller (2006) e Zizec (2008), analisam-na a partir de uma perspetiva que realça a a força das histórias ou histórias na infância, uma vez que estabelecem uma diferença entre violência e agressividade, reconhecendo esta última como inerente à própria experiência humana e colocando a primeira em práticas sociais ou institucionais baseadas no "controle" ou "manufatura" da criança (Merieu, 2003).

A partir deste quadro de interpretação podemos questionar se a aprendizagem que é feita através das leituras, mesmo quando elas transmitam rejeição em relação ao outro ou manifestam formas violentas de lidar com o outro, é necessariamente traduzida em comportamento violento, de dominação, de rejeição da diversidade ou xenofobia. Ou, pelo contrário, se permitem abordar essas situações, experienciá-las num ambiente protegido, mediado e acompanhado por uma história que sempre apresenta uma resolução positiva para o protagonista. Miller (2006) refere que muitas das práticas sociais e educativas padronizadas em relação ao tratamento de crianças, especialmente crianças em situações de abandono, são formas que também são discriminadoras porque não os reconhecem como protagonistas de sua própria experiência, deixando-os fora das decisões importantes que os afetam. Para o autor, essas crenças são baseadas numa imagem idealizada da infância que rejeita tudo o que implica aceitar que também nesse período se vivenciam eventos e experiências negativas e dolorosas.

Da mesma forma, em relação à violência do meio ambiente, Meirieu (2010) observa que o nosso contexto social e o mundo no qual as crianças estão agora incorporadas é gerador de violência pelo excesso de informação, de conteúdos e atividades que implicam a impossibilidade de tempo próprio. Também refere o controlo excessivo das atividades e a imposição de uma transparência absoluta, na qual o direito à privacidade das crianças não é reconhecido. Para ambos os autores, é justamente a negação de experiências e experiências complexas que geram contextos e relacionamentos violentos.

3. LITERATURA INFANTIL E EDUCAÇÃO

Para Molist (2008), as artes em geral, e a literatura de forma específica, podem refletir todos os registos da experiência humana, nomeadamente temas como morte, amor, erotismo ou violência, e é essa capacidade de abordar o complexo que o torna uma experiência básica na infância que não pode ser experimentada da mesma maneira em outras fontes, como o cinema, os média ou as redes sociais. A literatura, para o autor, ensina e ajuda a construir princípios éticos, mas de uma forma diferente no modo como se desenvolve como aprendizagem educacional. Ou seja, para o autor, a literatura infantil pode constituir um conteúdo válido da educação se não for "pedagogizada" em excesso.

A literatura e as artes favorecem um encontro com o complexo, heterogêneo e plural da sociedade e mostram a experiência de convivência, abordando a dificuldade das relações humanas, desde que, como ressalta o autor, não seja uma literatura mutilada ou construída como um exemplo. Bosch (2009) partilha desta linha de pensamento quando reflete que que as artes são uma ferramenta fundamental para encontrar o outro e começar a percorrer com ele o caminho da descoberta e do conhecimento.

Finalmente, autores como Tafarel (2001) indicam que as artes, a literatura, são também um meio de conhecimento do mundo, um meio de criação, de expressão subjetiva das próprias experiências através da mediação de uma história. As histórias serão uma maneira «segura» de fazer perguntas e questionar os eventos e dificuldades que vivemos ou testemunhamos. É precisamente a necessidade de fantasia na infância que dá relevância às histórias, pois elas nos permitem entrar no simbólico. As histórias seriam ferramentas de mediação que permitem entrar também nas experiências negativas, violentas e difíceis da vida, que também fazem parte das experiências da infância, e dotá-las de significado. Portanto, as histórias não devem ser suavizadas ou mutiladas nos elementos que são mais controversos. De uma perspetiva pedagógica, seria desejável propor uma abordagem ao conflito a partir da totalidade das narrações. É a partir dessas premissas que propomos a análise do discurso, e dos conteúdos nele subjacentes, das histórias para crianças.

4. OS LIVROS DE LITERATURA INFANTIL SELECIONADOS

4.1. SPARK LEARNS TO FLY

«Spark aprende a voar», de Foxon e Fuller (2007), conta-nos a história de um pequeno dragão e da sua irmã, Serena, que são obrigados a deixar a casa dos pais, pela ocorrência de episódios de violência familiar, passando a viver numa família de acolhimento. As ilustrações sugestivas e o texto muito claro e sintético permitem-nos acompanhar e compreender a vida inicial do casal de dragões, o aparecimento dos filhos, a ocorrência continuada dos episódios de violência, a retirada de Spark e Serena de casa dos pais, a integração no novo lar, e os desafios que se colocam em cada fase do acolhimento e para o futuro das crianças acolhidas. O livro tem múltiplos destinatários, entre crianças, adultos, técnicos e famílias, podendo ser um recurso ao nível da intervenção especializada, no âmbito do Acolhimento Familiar, ou um meio educativo de prevenção primária.

4.2. DENNIS DUCKLING

Dennis é um pequeno pato que vive com os seus pais e irmã num lago. Os acontecimentos na sua família levam à separação e Dennis e a irmã são acolhidos por uma família de acolhimento que vive no rio, para lá da colina. Os seus acolhedores ensinam-lhes a viver no rio, que tem cheiros e sons diferentes do lago, e apresentam-lhes os gansos e cisnes, que se tornam os seus novos amigos. «Dennis, o patinho», de Sambrooks e Tani (2009), narra o período de separação e as dificuldades de integração num ambiente diferente, as saudades que Dennis sente dos seus pais, as visitas organizadas por Annie, a social worker, e o modo como se habituam gradualmente a viver no rio com os seus acolhedores. O livro, com um discurso direto e sintético, e uma ilustração simples, colorida e adequada a crianças mais novas, termina com Annie a perguntar a Dennis onde prefere viver, sublinhando a importância de, na tomada da decisão, se ter em conta a opinião de Dennis. A última página apresenta-nos um menino e uma menina, de mãos dadas aos dois patos acolhidos e coloca uma pergunta direta a uma criança acolhida, a potencial destinatária da história: “Talvez possas falar com os adultos sobre o que sentes e quem queres ver, tal como Dennis fez?” (p.21).

4.3. HÄNSEL UND GRETEL

A casinha de chocolate é um clássico dos irmãos Grimm, que tem como título original «Hänsel und Gretel» e é ilustrado nesta versão por Auladell (2009), em tons acastanhados e acinzentados, a condizer com o tom lúgubre da história. Era uma vez um lenhador que vivia com os seus dois filhos, Hänsel e Gretel, e a madrasta dos dois perto de um grande bosque. Influenciado pela sua companheira, e pela pobreza em que viviam, decide abandonar os filhos no bosque, para não morrerem os quatro à fome. Na segunda vez em que são abandonadas, as crianças não conseguem encontrar o caminho de volta para casa e acabam por encontrar uma casa feita de bolo, chocolate e caramelo, onde vive uma bruxa malvada que os aprisiona. O intento da velha é comê-los, mas depois de Gretel empurrar a bruxa para dentro do forno, onde tem uma morte horrível, conseguem fugir e levar consigo pérolas e pedras preciosas que a bruxa tinha escondidas na casa. Conseguem, por fim, regressar a casa, onde o pai os espera emocionado e arrependido. A madrasta já tinha morrido e com a fortuna que traziam, nunca mais passaram fome e viveram muito felizes. História cruel, de maus tratos e redenção, de abandono e de refúgio num acolhimento ainda mais violento, numa narrativa que perdoa ao pai, o primeiro maltrante, e mata a madrasta e a bruxa, figuras que encarnam o mal, o ódio e o desespero.

4.4. ELFA AND THE BOX OF MEMORIES

«Elfa e a caixa de memórias», de Bell e Fuller (2008), conta-nos a história de um elefante especial porque transporta consigo, às costas, uma caixa bonita e brilhante, onde guarda as suas preciosas memórias. Nenhum dos animais da selva com que se cruza lhe pergunta o que traz dentro da caixa. Exceto Marvin, o macaco, que preocupado com o mau humor de Elfa, por carregar permanentemente com aquele peso às costas e não poder correr e brincar, se oferece para partilhar com Elfa as suas memórias. Quando abrem a caixa, descobrem que parte das recordações tinham desaparecido. Marvin, que surge nesta história como um mediador, inicia então com Elfa uma viagem aos locais e ao encontro dos animais que tinham sido importantes na vida da elefante, conseguindo preencher os espaços vazios. “Não é fácil quando não temos ninguém com quem partilhas as memórias”, diz Elfa, já no fim da história. E Marvin responde: “Sempre que quiseres partilhar as tuas memórias, basta procurares-me no topo das árvores. Eu irei imediatamente ter contigo” (p.23). Como tem a certeza que pode partilhar com Marvin as suas memórias, Elfa decide guardar a caixa num lugar secreto, onde a tinha aberto para Marvin pela primeira vez, e pode finalmente brincar e correr com os outros animais. Num traço arredondado, e recorrendo a tons alegres e coloridos, a história explica-nos que as recordações devem ser conservadas, resgatadas e respeitadas pelos profissionais, cuidadores e acolhedores, de modo a preservar-se a memória da história de vida de cada criança.

5. DIMENSÕES ANALISADAS NAS HISTÓRIAS SELECIONADAS

5.1. MEMÓRIAS

As memórias neutras ou positivas da casa, de lugares, pessoas e acontecimentos vividos antes da retirada devem manter-se presentes na vida das crianças acolhidas. Fazem parte da sua identidade, do seu património pessoal, social e emocional e devem ser respeitadas e preservadas pelos acolhedores e profissionais (Cairns, 2002). As recordações assustadoras subsistem frequentemente, por si só, ao contrário das melhores memórias, que só permanecem se forem cuidadas com a ajuda dos acolhedores. Spark, por exemplo, recorda os momentos em que jogava à bola e subia às árvores com os seus pais. O cheiro a salsichas grelhadas fá-lo reviver o modo como a sua mãe as cozinhava acendendo uma fogueira à porta da caverna onde viviam. Hänsel e Gretel não desistem de tentar encontrar o caminho que os leve de volta ao lar e ao seu pai, e logo que conseguem libertar-se da bruxa e da casa de chocolate, iniciam a viagem de regresso, onde os espera a pomba e o gato branco. Elfa transporta dentro da caixa as suas preciosas memórias, das enfermeiras e da maternidade onde nascera, do médico que a tinha tratado quando tivera sarampo, da família de acolhimento onde crescera e da professora da escola primária onde estudara.

«Spark aprende a voar» inclui um conjunto de orientações para a utilização do texto e das imagens do livro, que podem ser utilizadas para ajudar a criança a recordar o passado e a compreender e gerir melhor as imagens e os sentimentos que permanecem presentes. São meros exemplos ou sugestões de questões, que têm necessariamente de ser selecionadas e ajustadas a cada criança e à realidade do que sentiu, ouviu e viu. A sua utilização implica que o leitor tenha conhecimento das implicações que a história pode ter para cada criança em particular e pretendem constituir uma base para se iniciar o diálogo e não de um questionário com perguntas e respostas. Mais do obter as respostas, o mais importante é propor, sugerir à criança que desenvolva um processo de recordação e reflexão do vivido. Como observa Marí (2013), o trabalho educativo não consiste em explicar o conto a posteriori, em determinar que valores e em que sentido devem ser aprendidos como demonstração da sua compreensão. Pelo contrário, trata-se de escutar o que o conto provocou, de propor (em forma de diálogo ou de tarefa artística) uma exploração pelos interrogantes, situações e experiências que o conto sugere (p.12) 

Como Bell e Fuller sugerem, “todos temos memórias de tempos felizes e tristes. Todos gostamos de recordar as coisas positivas e esquecer as negativas. Mas todas as memórias, boas ou más, ajudam a recordar a história das nossas vidas” (2008, p. 2). Reforçar e reviver as boas memórias, de modo a tornar o passado um local menos assustador, pode passar pela colocação de perguntas tais como:

Spark vivia numa gruta. Como era a tua casa onde vivias?

Spark jogava à bola com o seu pai. O teu pai jogava algum jogo contigo?

Ias alguma vez às compras com a tua mãe?

Consegues recordar-te de alguma coisa divertida que tenha acontecido em casa? (Bell & Fuller, 2008, p.15)

«Elfa e a caixa de memórias» inclui em anexo um caderno intitulado «O meu livro de memórias», que pode ser preenchido por cada criança em acolhimento.

Está dividido nos seguintes pontos:

  • Coisas que recordo que me fazem feliz
  • Coisas que recordo que me fazem triste
  • Pessoas que recordo
  • Lugares que recordo
  • Pessoas que me podem ajudar a recordar
  • O que posso fazer que me ajude a recordar as coisas positivas
  • O que posso fazer que me ajude com as memórias negativas
  • Coisas que sempre quererei recordar

5.2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Spark e sua irmã Serena não são alvo de maus tratos físicos, mas sofrem indiretamente as consequências das discussões e das agressões que ocorrem entre os seus pais. Consequências emocionais e físicas quando os pais dragões se batem e se queimam, o que origina a saída para casa de Serena, a sua acolhedora. Spark sofre um impacto visível da violência doméstica ao nível emocional, manifestando sentimentos de medo, ansiedade, raiva e tristeza; ao nível moral, atendendo à dificuldade de distinguir o certo e o errado, uma vez que os sentimentos de revolta o levam a desejar magoar todas as pessoas que o rodeiam; ao nível biológico, porque sofre distúrbios no sono, tem pesadelos e chora durante a noite (Foxon & Fuller, 2007).

Hänsel e Gretel são abandonados pelos pais no meio do bosque, entregando-as a uma morte provável. São de novo maltratados pela bruxa que os acolhe e que os pretende matar, comendo-os. Todavia, inicialmente a bruxa atrai-os com os doces e chocolates, recebe-os com simpatia e oferece-lhes um delicioso jantar e deita-os em duas lindas caminhas. Simbolicamente, esta acolhedora representa um acolhimento que maltrata as crianças de modo igual ou pior ao contexto em que elas viviam na sua família de origem, sublinhando a importância crucial do acompanhamento e supervisão de todos os acolhimentos, em família ou instituição.

As orientações para a utilização do texto e das imagens de Spark sugerem as seguintes questões para abordar o tópico da violência:

  • “Spark ficava assustado quando o seu pai e a sua mãe discutiam e escondia-se. O que fazias quando o teu pai e a tua mãe discutiam?
  • O que sentes quando as pessoas discutem e gritam?” (Foxon & Fuller, 2007, p.15)

5.3. CUIDAR DOS IRMÃOS

 Em três das histórias selecionadas encontramos fratrias, todas compostas por dois elementos, o masculino mais velho e o feminino mais novo. Outro traço comum é a modo como desenvolvem em conjunto o seu percurso no sistema de proteção e como a presença do outro facilita a separação dos pais, a gestão das memórias e dos contactos e a enfrentar os difíceis acontecimentos. Spark protege a sua irmã Flame quando ocorrem os episódios de violência que conduzem à retirada da família de origem. A presença da irmã facilita a sua adaptação à família de acolhimento e a interpretar e assimilar os sentimentos e angústias que resultam do distanciamento e das visitas dos seus pais. Como é mais nova, Flame adapta-se mais facilmente à sua nova família e não conserva memórias do passado como sucede com Spark, que tem de ser ajudado por Serena na construção de mecanismos que lhe permitem gradualmente lidar com as emoções e redescobrir e manter a sua identidade.

A irmã de Dennis acompanha-o igualmente na transição da sua casa no lago para a família de acolhimento, e a presença dos dois é um fator protetor, que ajuda na adaptação ao novo ambiente e até então desconhecido do rio. Hänsel é inseparável de Greta e leva sempre a irmã consigo quando regressa a casa. Gretel, por sua vez, não abandona o irmão à sua sorte e é graças à sua coragem que a bruxa encontra o seu destino no forno. Os dois irmãos vivem esta odisseia em conjunto, no abandono inicial e no confronto com a bruxa, podendo-se concluir que só se salvam porque se mantêm unidos.

5.4. A SEPARAÇÃO

Na história de Elfa, a separação é mencionada a propósito de uma fase no seu percurso de vida, quando sai da família de acolhimento com quem tinha vivido muitos meses felizes. Esta separação deixa-a triste pois “tinha sido muito feliz com Harry e Helen e não tinha querido deixá-los”. Não há qualquer referência na história aos pais de Elfa. Este episódio sublinha o carater central das transições na vida das crianças que integram o sistema de acolhimento, como devem ser cuidadosamente preparadas e contar tanto quanto possível com a participação das crianças, de acordo com a sua idade e maturidade (Schofield & Beek, 2008). Neste caso, Elfa “ainda não compreendia porque os seus acolhedores não tinham cuidado dela para sempre” (Schofield & Beek, 2008, p.19). Contudo, em todas as situações, “por terríveis que sejam, e ainda que na maioria das ocasiões suponham algum tipo de perda, sempre é possível inaugurar outra coisa, imaginar outro começo” (Marí, 2013, p.15).

No caso de Dennis, a separação dos seus pais é preparada por Annie, a social worker, que acompanha os dois irmãos até ao rio e lhes apresenta a sua família de acolhimento. O papel desta profissional é essencial na realização da visita dos pais de Dennis e no acompanhamento da sua integração. Spark, por seu turno, tem pesadelos e terrores noturnos, logo após a separação, quando começa a viver com a sua acolhedora. Chora e chama pela mãe de noite e sonha com monstros que o perseguem. Serena abraça-o e tranquiliza-o, até que ele se sinta melhor, e estas imagens podem ser a base para um diálogo a partir de perguntas como:

Como se sentiram Spark e Flame quando foram separados dos seus pais?

Como te parece que terá sido ir viver com Serena, a acolhedora? Spark chorava pela sua mãe durante a noite. Pensas que as crianças choram pelas suas mães por vezes durante a noite? Devem contar a alguém?

Spark por vezes tinha pesadelos. Tu alguma vez tens pesadelos? O que é que sentes? (Marí, 2013, p.16)

5.5. SENTIMENTOS DIFÍCEIS

Todas as crianças destas histórias têm sentimentos difíceis, como a tristeza e as saudades, provocadas pela separação; a dificuldade de compreender o que está a acontecer ou porque é que certas decisões foram tomadas; a revolta com o desinteresse e o abandono; a preocupação com as suas memórias e a ameaça do esquecimento; a ansiedade e angústia relativamente ao que vai ocorrer no futuro; a vinculação com as figuras parentais que as desiludiram a maltrataram mas a que se sentem muito ligadas. Pela sua maneira de ser, de se comportar, através dos problemas que herdou da sua história pessoal, a criança introduz a sua própria família no contexto do acolhimento.

E há todo um conjunto de sinais e de comportamentos à espera se serem lidos, como “ a sonoridade, os gostos e os desgostos, os gestos e as atitudes, modos de comer, de se conter, de se exprimir, de se comportar em determinada circunstância” (David, 2000, p.62), que provocam e apelam reações dos acolhedores. As birras e o mau comportamento repetem, amiúde, atitudes e confrontos ocorridos anteriormente, no seio da família biológica. A resposta dos acolhedores deve ser diferente, atenta e interessada, demonstrando sem reservas que a criança conta, e que pode explorar os seus limites no espaço da nova família, apropriando-se “a pouco e pouco, interiorizando, do seu modo e ao seu ritmo, interditos e novos valores e de se afirmar na sua capacidade de construir uma identidade alimentada pela sua dupla pertença” (David, 2000, p. 67). A estratégia de comunicação pode recorrer a perguntas tais como:

Spark pinta borrões de tinta quando está zangado. O que é que tu fazes quando estás zangado?

Às vezes Spark está tão aborrecido que quer ser embalado como um bebé. Alguma vez te sentes assim?

Spark gosta muito de ouvir Serena cantar. O que te faz sentir melhor quando estás triste? (David, 2000, p.17)

5.6.CONTACTO COM A FAMÍLIA DE ORIGEM

É o tempo da divisão, do conflito interior que resulta da vontade de permanecer acolhido, seguro e apoiado, por um lado, e o desejo de regressar para casa dos pais. Dennis, por exemplo, sente-se dividido entre continuar a viver no rio, com a sua família de acolhimento, que o alimenta, protege e lhe dá afeto, e regressar para casa dos pais, que deseja muito ver antes e após as visitas. Para os acolhedores, é o tempo de escutar as inquietações, as alegrias e o sofrimento, de modo a diminuir o sentimento de solidão. É o que sucede quando Serena cozinha marshmallows para ajudar Spark a sentir-se melhor, depois de visitar a casa dos seus pais. O contacto constitui um espaço / tempo ambivalente, que pode proporcionar alegria e um enorme sentimento de satisfação, ou angústia, medo e inquietação, se constitui uma repetição dos momentos de abuso ou negligência. Pode paradoxalmente proporcionar esta variedade de sentimentos ao mesmo tempo. Deve ser pelo exposto cuidadosamente preparado, acompanhado e avaliado (Atwool, 2013; Sen & Broadhurst, 2011).

5.7. GUARDAR AS MEMÓRIAS NUM LUGAR SEGURO

Spark tem medo de se esquecer do seu passado, como sucedeu com a sua irmã. A sua acolhedora sugere-lhe então que faça um livro intitulado «A História de Spark» onde deveria escrever e desenhar tudo o que se lembrasse dos momentos que vivera com os seus pais. Na companhia da sua acolhedora, visita e fotografa a antiga caverna onde vivera com a sua família e o campo onde jogava à bola com o seu pai. Elfa tem tanto apreço pelas suas memórias que não consegue deixar de carregar a caixa onde as guarda. Até ao momento em que as partilha com o seu amigo Marvin e decide colocar a caixa num sítio secreto, onde poderá voltar sempre que quiser. A história propõe a construção de um livro de memórias que descrevemos em detalhe anteriormente, e na verdade “ninguém pode recordar tudo o que lhe aconteceu, mas podemos recordar parte das coisas importantes – o que aconteceu num dia especial, o que alguém nos disse, a prenda especial que recebemos, as coisas que nos fizeram rir ou chorar. Recordamos pessoas importantes e lugares mesmo que não os vejamos no presente” (Bell & Fuller, 2008, p.2).

5.8. O FUTURO

Hänsel e Gretel viverão muitos felizes com o seu arrependido pai, e as jóias que trouxeram da casinha de chocolate garantem um futuro de abundância e prosperidade. Elfa, por sua vez, tem um futuro sorridente à sua espera, agora que conta com o seu amigo Marvin para partilhar o seu passado e pode correr e brincar sem o peso da sua caixa de memórias. A história de Dennis e da sua irmã termina depois de Annie lhes ter perguntado se preferiam regressar a casa ou ficar a viver com a família de acolhimento. Não sabemos qual foi a sua resposta mas sabemos que essa opinião é importante e que vai ajudar os patos adultos que tomam essas decisões a escolher o que será melhor para o futuro dos dois irmãos.

Spark fez uso da sua resiliência para, apoiado nas memórias positivas do passado e aconchegado pelo ambiente seguro e carinhoso que a sua acolhedora lhe proporcionava, ultrapassar a ferida da dor, do abandono e da separação, conseguindo elevar-se nos ares e alcançar o topo da árvore mais alta da floresta. Para David (2000), o acolhimento familiar revela todo o seu valor quando a criança encontra um novo espaço de estabilidade e onde pode viver em segurança, separado dos seus pais, mas mantendo-os vivos em si. Suspenso no ar, apoiado pelo vento que sopra debaixo das suas asas, Spark recorda à distância as experiências negativas e positivas do seu passado, ouve os aplausos e os elogios da sua acolhedora, da sua irmã e dos seus amigos, e perscruta com orgulho e curiosidade a floresta que se desdobra na linha do horizonte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acolher é lidar com comportamentos problemáticos, com perturbações emocionais, com dificuldades de integração em casa, na escola e na comunidade envolvente, com aprendizagens provavelmente mais lentas e difíceis. Em paralelo, é potencialmente gerador de enormes recompensas, associadas à generosidade de quem ajuda e sabe que a sua ajuda está a ser recebida, às mudanças que vão ocorrendo no desenvolvimento e a tudo o que se recebe em troca, intensamente, no relacionamento com a criança.

As artes e a literatura infantil, em particular, proporcionam “espaços, situações e relações que nos introduzem na experiência do encontro com os outros em todas as suas dimensões” (Marí, 2013, p.11). Lurie (2003) observa que as histórias são um modelo a partir do qual é possível explorar as relações humanas e experimentar as suas contradições. As histórias, para o autor, não são elementos simples, mas colocam, por intermédio de uma linguagem simples, «tarefas» difíceis para cada pessoa, que oferecem, por sua vez, uma saída para situações complexas, nomeadamente as que se associam às situações de acolhimento.

REFERÊNCIAS

Atwool, N. (2013). Birth Family Contact for Children in Care: How Much? How Often? Who With?. Child Care in Practice, 19(2), 181-198.

Bárcena, F. (2003). El delirio de las palabras. Ensayo para una poética del comienzo. Barcelona: Herder.

Bell, M., & Fuller, R. (2008). Elfa and the box of memories. London: BAAF.

Bosch, E. (2009). Un lloc anomenat escola. Barcelona: Editorial Graó.

Cairns, K. (2002). Attachment, trauma and resilience: therapeutic caring for children. London: BAAF.

Colton, M., & Williams, M. (1997). The world of Foster Care: an international sourcebook on Foster Family Care System. Aldershot: Ashgate.

Conselho da Europa para os Direitos da Criança (2016). Estrategia del Consejo de Europa para los derechos de los niños y las niñas (2016-2021). Derechos humanos de los niños. Estrasburgo: SPDP, Consejo de Europa https:// rm.coe.int/estrategia-del-consejo-de-europa-para-los-derechos-de-losninos-y-las-/1680931c9a

Council Of Europe. (2017). COMPASS. Manual de Educación en los Derechos Humanos con Jóvenes. Acedido em 23 de Maio de 2019 em https:// www.coe.int/es/web/compass/children  

Courtney, Mark & Iwaniec Dorota (2009). Residential care of children. New York: Oxford University Press.

David, M. (2000). Enfants, parents, famille d’accueil. Un dispositif de soins :

l’accueil familial permanent. Ramonville Saint-Agne: Érès.

Foxon, J., & Fuller, R. (2007). Spark learns to fly. London: BAAF.

Grimm, J.,& Grimm, W. (2008). Hansel e Gretel. Matosinhos: Kalandraka. 

Lardín, R. (2003) (ed.): El día del niño. La infancia como territorio para el miedo. Madrid: Editorial Valdemar.

Lurie, A. (2003). Niños y niñas eternamente. Los clásicos infantiles desde Cenicineta hasta Harry Potter. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez.

Maffessoli, M. (2005). La part del diable. Compendi de subversió postmoderna. Biblioteca B.R.I, Vallbona de les Monges : March Editor. 

Magris, C. (2001): Utopía y desencanto. Historias, esperanzas e ilusiones de la modernidad. Barcelona: Anagrama.

Marí, R. (2013). Los centros pacíficos: dejar en paz y hacer las paces como experiencia educativa. Ponencia realizada in II Congreso Internacional de Educación para la paz. Málaga: Universidade de Málaga.

Mèlich, J. C. (2004): La lección de Auschwitz. Barcelona: Herder.

Meirieu, P. (2010). Una llamada de atención. Carta a los mayores sobre los niños de hoy. Barcelona: Ariel.

Miller, A. (2006): Por tu propio bien. Raíces de la violencia en la educación del niño. Barcelona: Editorial Tusquets.

Molist, P. (2008). Dentro del espejo. La literatura infantil y juvenil contada a los adultos. Barcelona: Editorial Graó.

Rivas, E. (2018) (Coord.). Bajo el mismo techo. Las Casas de los Niños: un recurso para atender a niños y niñas víctimas de abuso sexual y sus familias en Catalunya. Barcelona: Save the Children.

Sambrooks, P., & Tani, T. (2009). Dennis Duckling. London: BAAF.

Schofield, G. & Beek, M. (2008). Achieving Permanence in Foster Care. London:

BAAF.

Sen, R., & Broadhurst, K. (2011). Contact between children in out-of-home placements and their family and friends networks: a research review. Child and Family Social Work, 16 (3), 298–309. 

Troncoso, A. (2015). Literatura para niños y niñas: la necesidad de desmantelar la dominación. Marejada. Voces, pensamiento y movimiento pedagógico, 2, 34-41. 

UNICEF (2017). Una situación habitual. Violencia en la vida de los niños y adolescentes. Nueva York: UNICEF. 

Zizek, S. (2008). Violència. Sis reflexions de biaix. Barcelona: Editorial Empúries.