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As orações adversativas na Língua Brasileira de Sinais: uma abordagem semântico-funcional[1]
Angélica Rodrigues[2]
UNESP-Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
RESUMO
Apresentamos, neste trabalho, uma análise das orações adversativas na Língua Brasileira de Sinais - Libras, destacando suas propriedades semânticas. Sintaticamente as adversativas em Libras podem ocorrer justapostas ou interligadas por conjunção manual, que, como verificamos nos dados, podem ser de pelo menos três tipos. Tendo em vista principalmente os trabalhos de Lakoff (1971) e Sweetser (1990), pudemos identificar que as adversativas em Libras veiculam valores semânticos como contraste, contraexpectativa, retificação e negação, além de atuarem nos níveis epistêmico e dos atos de fala (Sweetser, 1990). Nossa análise é qualitativa e está baseada em dados espontâneos produzidos por surdos brasileiros em blogs sinalizados do Facebook e do Youtube.
Palavras-chave: Orações Adversativas; Língua Brasileira de Sinais - Libras; Conjunção Adversativa.
ABSTRACT
This works aims to present an analysis of adversative clauses in Brazilian Sign Language - Libras, highlighting their semantic properties. Syntactically adversatives can occur juxtaposed or interconnected by manual conjunction, which, as we have seen in the data, can be of at least of three types. In this paper, taking into account mainly Lakoff (1971) and Sweetser (1990) works, we present the results that show that adversatives in Libras take semantic values, such as contrast, denial of expectation, correction and negation, acting also on epistemic and conversational domains (Sweetser, 1990). Our analysis is qualitative and is based on spontaneous data produced by Brazilian deaf signers in signing blogs on Facebook and Youtube.
Keywords: Adversative Clauses, Brazilian Sign Language - Libras; Adversative Conjunction.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise das propriedades sintáticas e semânticas das orações adversativas com a conjunção manual MAS na Língua Brasileira de Sinais - Libras. Nossa análise, que é baseada em dados espontâneos produzidos por surdos brasileiros em blogs sinalizados do Facebook e do Youtube, apontam para uma variação na configuração morfossintática dessas orações e nas suas propriedades semânticas.
No que diz respeito às propriedades morfossintáticas, observamos que pelos menos 3 sinais glosados como MAS na Libras podem ser usados em contextos de orações adversativas. Já em relação às propriedades semânticas, identificamos nos dados subtipos semânticos das orações adversativas, descritos apenas para as línguas orais.
Considerando que a distinção entre coordenação e subordinação não é trivial nas línguas sinalizadas (Tang & Lau 2012, p. 340; Pfau, 2016), para quais até mesmo a definição de sentença é problemática, já que as teorias sintáticas partiram sempre das línguas orais, nosso foco na análise das orações adversativas introduzidas pela conjunção manual MAS justifica-se pela relevância das conjunções na indicação de fronteiras de unidades sintáticas frasais. Na literatura sobre Libras é possível encontrar referências ao uso de conjunções e sentenças complexas, mas trata-se de um tópico pouco explorado e jamais analisado com base em dados espontâneos, o que, portanto, também justifica este trabalho.
Este artigo está organizado da seguinte forma: na Seção 1, apresentamos uma descrição dos sinais glosados como MAS tendo em vista dois importantes dicionários de Libras publicados no Brasil. Na Seção 2, descrevemos a metodologia de coleta e análise dos dados. Na Seção 3, discutimos os pressupostos teóricos básicos que nortearam o desenvolvimento deste trabalho, destacando principalmente as contribuições advindas dos pesquisas que tratam das orações adversativas em línguas orais e línguas sinalizadas. Na Seção 4, apresentamos os resultados de nossas análises. Por fim, apresentamos nossas conclusões e as referências.
1. O sinal MAS em dicionários
Uma vez que não encontramos na literatura uma descrição linguística sobre orações adversativas e o uso do sinal MAS em Libras, iniciamos nosso texto apresentando o registro desse sinal em dois importantes dicionários de Libras publicados no Brasil.
O Dicionário da Língua de Sinais do Brasil: A Libras em suas Mãos (Capovilla et.al.; 2017)[3] traz três entradas para o sinal mas, conforme Figuras 1-3:
Figura 1. Sinal MAS (1) em Capovilla et al. (2017, p. 1763)
Figura 2. Sinal MAS (2) em Capovilla et al. (2017, p. 1763)
Figura 3. Sinal MAS (3) em Capovilla et al. (2017, p. 1763)
Capovilla et al. (2017) descrevem a variação do sinal glosado como mas, que é classificado como conjunção associada a valores como oposição, ressalva ou restrição.
O Dicionário da Língua Brasileira de Sinais[4] (Lira & Souza, 2011), por seu turno, traz duas entradas para MAS. Na primeira entrada, mas aparece como M-A-S (soletração digital) e é classificado como conjunção, na sentença "VOCÊ PROVA BO@ M-A-S PRECISAR ESTUDAR".
Na segunda entrada, mas (Figura 4) também é descrito como conjunção, na sentença "EU QUERER PASSEAR MAS EU TER-NÃO DINHEIRO".
Figura 4. MAS em Lira & Souza (2011)
Tendo em vista as descrições apresentadas em Capovilla et al. (2017) e Lira e Souza (2011), podemos depreender que existe uma variação no uso de sinais que podem ser glosados como MAS em contextos de sentenças adversativas. Capovilla et al (2017) sugere, de certo modo, que essa variação é regional, mas sabemos que não há um estudo sociolinguístico da Libras para comprovar a distribuição geográfica do sinal mas. Aspecto a se destacar também na consulta aos dicionários é que à variação lexical não está associada nenhuma especificidade semântica.
2. Metodologia
Para a análise da conjunção mas, compilamos um corpus a partir de vídeos produzidos por sujeitos surdos e publicados em blogs sinalizados do Facebook e Youtube. Esse corpus é constituído de 21 vídeos em que 43 ocorrências do sinal MAS foram registradas. A análise empreendida é qualitativa, uma vez que nosso objetivo é mostrar a variação e os valores semânticos associados ao MAS em Libras. Todas as ocorrências foram anotadas através da utilização do programa ELAN, com a ajuda de um surdo e um intérprete de Libras[5].
O ELAN (Hellwig & Geerts, 2013) é um programa para anotação de arquivos de áudio e vídeo, desenvolvido pelo Instituto Max Planck de Psicolinguística e disponível em https://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/. Oushiro (2014), destaca as vantagens de utilização desse programa para a anotação de dados linguísticas, dentre os quais destacamos: (a) "a sincronização entre o arquivo de mídia e a transcrição/anotação, o que facilita enormemente a análise linguística dos dados (por exemplo, para codificação de variantes de variáveis fonéticas)"; (b) "a possibilidade de criação de múltiplas trilhas", que, no caso a anotação de dados de línguas de sinais, permite uma anotação detalhada dos sinais e dos marcadores não-manuais; (c) "o fato de ser gratuito, e que vem sendo utilizado cada vez mais entre estudiosos da língua em uso".
Tendo em vista os objetivos deste trabalho, as trilhas de anotação escolhidas foram: (a) sinal mão direita; (b) sinal mão esquerda; (c) mouthing, (d) elementos não-manuais e (e) tradução.
Por questões éticas, os vídeos não serão reproduzidos neste artigo. Todas as ocorrências serão apresentadas por meio de glosas com sugestão de tradução para o Português. Não temos acesso a informações sobre os sinalizantes, como idade e local de residência. Sendo assim, não é possível nenhuma conclusão sobre a distribuição geográfica desses sinais, conforme Capovilla et al. (2017) propõem.
Para este trabalho, nossa análise se restringiu à identificação dos valores semânticos das orações adversativas conectadas pelo sinal MAS(2), que foi o sinal mais recorrente nos dados.
No que diz respeito à configuração estrutural das adversativas em Libras, os dados mostram que ocorrem em duas formas: justapostas, como em (1) ou ligadas por conjunção manual, como em (2). Para este artigo, restringimo-nos à análise das adversativas sindéticas, ou seja, as adversativas introduzidas por conjunção manual.
(1) EU PODER APRENDER PORTUGUÊS EU APRENDER LIBRAS DOIS LÍNGUAS BILÍNGUE PRA LÁ PRA LÁ TEMPO NÃO-DÁ UMA NÃO EU PRECISAR DOIS EU PRECISAR FOCO LIBRAS
'Eu posso aprender português e posso aprender Libras, posso ser bilíngue, mas agora não dá tempo, eu preciso focar na Libras'
Mas
(2) ADQUIRIR LIBRAS PREFERIR MAS1 NÃO-QUERER VOTAR ESTE LIBRAS1 LIBRAS2
'Eu aprendi esse sinal pra libras1, mas não quero votar para escolher se deve usar Libras1 ou Libras2'
Nos dados também encontramos uma variação do sinal que pode ser glosado como mas, como pode se ver nas figuras de 5 a 8:
Figura 5. MAS1 |
Figura 6. MAS1' |
Figura 7. MAS2 |
Figura 8. MAS3 |
Dessa variação registrada nos dados, consideramos as Figuras 5 e 6 como variação do mesmo sinal, que pode ser realizado com uma (MAS1) ou duas mãos (MAS1'). Para este artigo, nossa análise se restringiu aos usos dos sinais MAS1 e MAS1', que correspondem ao que Kendon (2004) chama de open hand prone gesture (gesto de mão aberta).
Observamos que Mouthing e arqueamento de sobrancelha podem ocorrer simultaneamente ao MAS, todavia nossas conclusões até o momento apontam para a necessidade de uma ampliação da análise para que possamos descrever com mais exatidão o uso de MNM nesses contextos.
Tendo em vista a variação relativa aos diferentes valores semânticos que as orações adversativas podem veicular, não foi possível também associar um sinal específico como responsável por um determinado valor semântico. Como veremos na Seção 4, com base na análise dos dados, não temos evidência de que a variação lexical esteja associada à variação semântica, sendo o sinal MAS1 e MAS1' usado em todos os subtipos semânticos.
3. As orações adversativas em línguas orais e línguas sinalizadas
As orações adversativas integram, ao lado das orações aditivas e alternativas, o grupo das orações coordenadas. Tradicionalmente, as orações coordenadas são descritas como orações independentes, uma vez que nenhuma das orações funciona como termo da outra oração. À essa visão, sobrepõem-se alguns autores, como Bally (1965), que tratam a coordenação numa perspectiva semântico-pragmática.
Bally (1965) propõe que toda oração é um ato de enunciação completo, de natureza funcional, suscetível à bipartição em dois segmentos de importância comunicativa distinta: o tema e o propósito. O tema é definido como o ponto de partida ao qual é acrescido o propósito, que representa o centro de interesse da comunicação.
No modelo proposto por Bally, três mecanismos de constituição de orações complexas, a saber coordenação, segmentação e soldadura. Segundo o autor, para que haja coordenação dos segmentos C1 e C2, é preciso que (i) C1 constitua um ato de enunciação completo, capaz de funcionar de forma independente; e, (ii) C2 constitua o propósito de C1. Segundo Longhin e Rodrigues (2011), "na coordenação, as orações estão relacionadas de tal forma que a segunda toma a primeira como tema e é no interior desse tema que ela deve ser interpretada como acrescentando ao discurso a informação mais importante ou saliente".
Aplicadas à análise das orações adversativas, as propostas de Bally são suficientes para compreender a natureza dessas orações, em que o segundo conjunto, que pode ou não ser introduzido por uma conjunção adversativa, constitui a informação mais relevante ou mais saliente, que se opõe e/ou contrasta com a informação apresentada no primeiro conjunto.
Embora representem abordagens distintas, os pressupostos de Bally podem convergir com os trabalhos de Lakoff (1971) e Sweetser (1990) sobre os usos de but (mas) em inglês, na medida em que as duas autoras apresentam uma análise semântica das orações adversativas, às quais se associam valores de oposição e contraexpectativa.
Segundo Lakoff (1971, p. 131), os membros dos dois conjuntos ligados por mas devem estar de algum modo relacionados, evidenciando o que identifica como "tópico comum". Desse modo, podemos compreender porque a sentença em (4), ao contrário de (3), parece ser inaceitável:
(3) João tem um iate, mas Pedro tem uma mansão.
(4) ?João tem uma casa, mas Pedro tem um dedo inchado[6].
Para Lakoff (1971, p. 132) o que está em jogo é a combinação de similaridades e diferenças que viabiliza o uso de mas. Partindo de sentenças como (5) e (6), relaciona mas a dois significados principais, oposição semântica e contraexpectativa, respectivamente.
(5) João é alto mas Pedro é baixo.
(6) João é alto mas não joga basquete.
Em (5), não há relação implícita ou explícita entre as duas partes da sentença, a não ser o fato de que os sujeitos se diferem em relação a uma propriedade particular (estatura). Em (6), a primeira parte da sentença instaura uma pressuposição de que pessoas altas jogam basquete, que é cancelada pela segunda parte, habilitando assim o uso de mas.
A autora destaca também que, de uma perspectiva formal, as sentenças com mas que têm um valor de oposição semântica, em que a ordem das sentenças pode ser alterada. Todavia, as adversativas que veiculam um significado de contraexpectativa não permitem alteração da ordem.
Os valores semânticos de mas também foram discutidos em Sweetser (1990), de modo que a autora (Sweetser, 1990, p. 101) afirma que o uso de mas está associado à ligação de dois conjuntos que de algum modo se contrastam. Esse contraste pode ocorrer em dois níveis, a saber nível epistêmico e nível dos atos de fala ou nível conversacional. No nível epistêmico, as premissas disponíveis se opõem a uma aparente conclusão necessária, como em (7), em que a informação de que João tem sempre no armário de casa seis caixas de preparado de panquecas leva à conclusão aparentemente necessária de que ele come panquecas com frequência. Essa conclusão, todavia, é cancelada pela informação veiculada na sentença introduzida por mas:
(7) João sempre tem seis caixas de preparado de panquecas no armário, mas ele nunca come panquecas[7].
No nível conversacional, atos de falas aparentemente contrastivos são combinados pelo uso de mas, como em (8), em que a sugestão indireta no primeiro conjunto colide com a sugestão indireta no segundo conjunto, uma vez que ambas não podem ser aceitas simultaneamente:
(8) King Tsun serve um maravilhoso mu shu pork, mas China First tem um excelente dim sum.
Dos trabalhos de Lakoff (1971) e Sweetser (1990) importam, para este artigo, (i) as considerações acerca dos diferentes valores semânticos que as orações com mas podem assumir: oposição semântica e contraexpectativa, e (ii) a possibilidade de inversão de ordem apenas do primeiro tipo semântico (oposição).
Trabalhos desenvolvidos em outras vertentes linguísticas como Anscombre e Ducrot (1977), Neves (1984, 2000), Jasinskaja (2012) e Winterstein (2012), ao lado dos trabalhos de Lakoff (1971) e Sweetser (1990), fortalecem a análise de mas, e equivalentes em outras línguas, como veiculador de valores associados à contraexpectativa, retificação, contraste e negação.
Nossa análise sobre os usos do sinal manual glosado com mas em Libras sugere que esses mesmos valores se aplicam às línguas de sinais. Na literatura linguística sobre línguas de sinais, encontramos informações sobre a relativa frequência com que o sinal MAS aparece em várias línguas de sinais do mundo, como atestam Tang e Lau (2012, p. 343) sobre a Língua de Sinais Australiana (Auslan), Língua de Sinais Americana (ASL) e Língua de Sinais Britânica (BSL). Pfau (2016, p. 164) também sustenta que muitas línguas de sinais parecem ter a conjunção manual mas, como na sentença em (9) da Língua de Sinais Alemã (DGS):
neg
(9) ROLAND SPANISH LEARN WANT BUT IX3a NEVER TIME
'Roland gostaria de aprender espanhol, mas ele nunca tem tempo. (DGS)
Waters e Sutton-Spence (2005, p. 5) analisam a frequência de uso de conjunções manuais na Língua de Sinais Britânica e mostram que o sinal glosado como mas (≈ but) corresponde a 11% (segundo tipo mais frequente) de 238 ocorrências de conjunções em BSL:
(10) CORNWALL ORAL COUNTY BUT YOUTH COME DEAF CLUB
'Cornwall é uma vila oralizada, mas os jovens vêm para o Clube dos Surdos'
Zorzi (2018) apresenta uma análise sobre coordenação na Língua de Sinais Catalã (LSC), em que argumenta que as adversativas nessa língua são expressas majoritariamente com a presença da conjunção manual MAS numa associação com marcadores não manuais. Segundo a autora, as orações adversativas na LSC veiculam os valores semânticos de contraste e contraexpectativa (11) e correção (12):
(11)
(12)
Outros trabalhos sobre a análise de orações adversativas com mas em línguas de sinais não são conhecidos. No que diz respeito à Libras, a análise empreendida neste artigo é inédita e contribui, de modo específico, para a sua descrição, e, de modo geral, para os estudos sobre orações adversativas em línguas de sinais.
4. Orações adversativas com mas na Língua Brasileira de Sinais
A análise das orações adversativas em Libras revela uma variação associada à sua configuração sintática, aos tipos de conjunções e à sua natureza semântica. Retomando os trabalhos de Lakoff (1971), Sweetser (1990) e as contribuições de Anscombre e Ducrot (1977), Neves (1984, 2000), Jasinskaja (2012) e Winterstein (2012) para a descrição dos valores semânticos das orações adversativas com mas e seus cognatos em várias línguas, assumimos, com base na análise de dados espontâneos, que as orações adversativas em Libras atuam nos domínios epistêmico e dos atos de fala, além de veicularem valores de contraexpectativa, retificação e negação.
Em (13), as sentenças interligadas por MAS expressam dois atos de fala discordantes que definem, de modo contrastivo, a participação dos surdos e seus familiares na internet. A sinalizante compara o envolvimento dos surdos e dos familiares dos surdos no grupo "A sociedade em Libras" do Facebook. Na primeira parte do enunciado, ela diz que os surdos postam muitas coisas na página do grupo e na segunda, introduzida por MAS (MAS1'), ela diz que os familiares não postam quase nada. Há, portanto, uma comparação que é, na verdade, uma crítica ao fato de os familiares dos surdos não se envolverem com as questões dos surdos:
mas
(13) GRUPO AMIGO SURDO POSTA(3) MAS1' GRUPO FAMÍLIA AINDA NÃO
'Os surdos do grupo postam muitas coisas mas os familiares não postam quase nada"
Em (12) repetido em (14) abaixo, temos orações adversativas que atuam no nível epistêmico, mostrando que a segunda oração contrasta com a conclusão esperada para a primeira oração. Esse enunciado foi produzido num contexto de discussão sobre uma votação que a comunidade surda brasileira queria instituir para decidir qual seria o sinal "correto" para identificar a Libras. O sinalizante afirma que ele prefere usar o sinal transcrito no dado como Libras1, o que gera a expectativa de uma conclusão de que ele votaria, desse modo, para que esse sinal fosse escolhido. Todavia, ele afirma, na segunda oração, introduzida por mas (mas1), que não quer participar da votação.
mas
(14) ADQUIRIR LIBRAS PREFERIR MAS1 NÃO-QUERER VOTAR ESTE LIBRAS1 LIBRAS2
'Eu aprendi esse sinal pra libras1, mas não quero votar para escolher se deve usar Libras1 ou Libras2'
Nesse mesmo contexto, (15) representa uma oração adversativa com valor de contraexpectativa. No debate sobre a referida votação para escolha de um único sinal para Libras, muitos surdos alegam que não reconhecem alguns dos sinais usados por outros surdos. No vídeo em questão, a sinalizante diz que não usa os sinais Libras1 e Libras2, o que gera uma expectativa de que ela também não reconheça esses sinais ou que considere que são sinais não legítimos. Porém, na segunda oração introduzida por MAS (MAS1), ela informa que conhece (e reconhece como sinais da comunidade surda) os dois sinais, informação que contrasta a expectativa criada na primeira parte do enunciado.
mas
(15) LIBRAS1 INDEX1 NÃO-USAR LIBRAS2 INDEX1 NÃO-USAR MAS1 INDEX1 CONHECER
‘Eu não uso o sinal Libras1, eu não uso o sinal Libras2, mas eu os conheço’
O valor de retificação/correção pode ser depreendido de sentenças como (16) e (17). Em (16), na primeira parte da sentença figura a informação de que alguns surdos gostam de música, informação que é retificada na segunda oração introduzida por MAS (MAS1), em que é explicitado que os surdos gostam de música adaptadas:
mas
(16) TER PESSOA SURD@ GOSTAR INDEX3 MÚSICA3 S-I-M MAS1 ADAPTAÇÃO
‘Há surdos que gostam de música, mas quando existe uma adaptação'
Em (17), numa discussão sobre a possível mistura por meio do uso de empréstimos da ASL, o sinalizante afirma, na primeira sentença, que concorda com as alegações de que essa "mistura" acontece em contexto de informalidade. Todavia, na sentença introduzida por MAS (MAS1), ele retifica e ratifica sua postura de condenar o uso de sinais da ASL por surdos brasileiros:
mas
(17) ELE FALAR É NORMAL MISTURAR É INFORMAL OK OK CONCORDAR INFORMAL MAS1 O-QUE CUIDADO USAR LÍNGUA-DE-SINAIS MISTURAR EVITAR
'Tem pessoas que falam que isso é natural essa mistura (ASL e Libras), que isso decorre do uso informal, OK! Eu concordo com o informal, mas, é preciso ter cuidado com o uso da Libras e evitar essas misturas.'
Finalmente, temos em (18) um caso de oração adversativa com valor semântico de negação. A primeira sentença toma como pressuposto o que seria um consenso entre muitas pessoas, segundo o sinalizante, de que a palavra homossexual se refere apenas a homens. Nesse sentido, o sinalizante nega esse pressuposto ao informar, na segunda oração, introduzida por MAS (mas1'), que a mesma palavra é usada para se referir também a mulheres.
mas
(18) INDEX3 PALAVRA H-O-M-O-S-S-E-X-U-A-L SÓ HOMEM MAS1' SER-NÃO MULHER USAR PALAVRA H-O-M-O-S-S-E-X-U-A-L
‘As pessoas acham que a palavra homossexual é usada apenas para homem, mas é usada também para mulher'
Dos dados apresentados, depreendemos que as orações adversativas em Libras estão a serviço de valores semânticos distintos, assim como as adversativas em línguas orais conforme os trabalhos já citados. Ressaltamos, todavia, que esses valores semânticos se inter-relacionam, uma vez que parece que subjaz a todos os tipos de adversativas uma noção de contraste, que está, de certo modo, presente em todas os dados analisados.
O mouthing mas coocorre em quase 60% dos dados. Todavia, 39% dos nossos dados (17 ocorrências) foram produzidas por um sinalizante que nunca usa mouthing ou MNM. Desse modo, considerando que esses resultados foram enviesados por uma questão estilística, podemos concluir que a presença de mouthing é quase categórica na produção dos sinais MAS1 e MAS1'. Rodrigues (em preparação) trata do uso variável desses sinais e defende que sua origem é o gesto de mão aberta (Open hand prone (Kendon, 2004)) que se gramaticalizou em conjunção adversativa. Segundo a autora, o uso de mouthing pode ser usado para contrastar os usos mais e menos gramaticalizados de MAS1, o que é confirmado nos nossos dados.
5. Considerações finais
Apresentamos, neste trabalho, uma análise das orações adversativas em Libras, partindo de dados espontâneos coletados a partir de vídeos compartilhados em blogs sinalizados do Facebook e Youtube. Nossa conclusão foi de que as orações adversativas em Libras têm um comportamento semelhante às adversativas descritas para línguas orais, expressando, pois, valores de contraste, contraexpectativa, refutação/correção, comparação e negação. Mostramos também que as adversativas em Libras podem atuar, conforme propõe Sweetser (1990) nos domínios epistêmicos e dos atos de fala.
Além disso, nossos dados revelam uma variação na configuração estrutural das adversativas, na medida em que verificamos o uso de sinais distintos, glosados como MAS1, MAS1', MAS2 e MAS3.
Nossa análise será aprimorada futuramente para dar conta de uma descrição mais detalhada da variação lexical e do uso de expressões não-manuais nas adversativas em Libras. Nossa contribuição, neste trabalho, foi apresentar uma primeira análise das adversativas em Libras dentro de uma perspectiva funcional. Uma vez que não há poucos trabalhos sobre adversativas em outras línguas de sinais, nossa pesquisa contribui também para inaugurar um tópico no âmbito da linguística de línguas de sinais.
REFERÊNCIAS
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Hellwig, B.; Geerts, J. ELAN – Linguistic Annotator. Versão 4.4.0. Disponível em: <http://www.mpi.nl/corpus/manuals/manual-elan.pdf>.
Jasinskaja, K. (2012). Correction by adversativa and additive markers. Lingua 122. pp.1899-1918.
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Lakoff, R. (1971). "If's, and's, and but's about conjunction." In Fillmore, Charles F. & Langendoen, D. Terence. (eds.). Studies in Linguistic Semantics. NY: Holt Rinehart & Winston Inc. p. 114-149.
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[1] A pesquisa de pós-doutorado que levou aos resultados apresentados neste artigo recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo 2015/23541-2). Esta pesquisa foi conduzida na Universidade de Amsterdão, sob a supervisão do Prof. Roland Pfau.
[2] Email de contacto: angelica.rodrigues@fclar.unesp.br
[3] O Dicionário da Língua de Sinais do Brasil: A Libras em suas Mãos (Capovilla et al.; 2017) reúne cerca de 13 mil sinais da Libras em entradas lexicais individuais, ordenadas semasiologicamente, ou seja, em ordem alfabética, trazendo no interior dos verbetes palavras em português e inglês correspondentes ao sinal lematizado, a definição (acepção), ilustrações e a descrição do sinal, frases com exemplos de uso do sinal, escopo geográfico dos estados brasileiros em que o referido sinal é utilizado, além da escrita do sinal em SignWriting e a soletração digital em Libras do lema.
[4] Disponível em http://www.acessibilidadebrasil.org.br/libras_3/. Trata-se de um dicionário online, cuja consulta pode ser realizada pela ordem semasiológica ou onomasiológica, ou seja, a partir de campos semânticos (assuntos) ou pela configuração de mão do sinal. Sua microestrutura é bastante completa, do ponto de vista das demandas e especificidades das línguas envolvidas, a libras e o português, e contém um campo para designar o assunto, a lista de palavras, a configuração da mão dominante, o vídeo (que apresenta a execução do sinal com movimento, possibilitando uma visualização mais clara e fiel do sinal), a acepção, exemplo de utilização do termo em uma frase no português, exemplo de utilização do termo na mesma frase do português, porém na estrutura e ordem de palavras da libras, a imagem relacionada ao lema, a classe gramatical e sua origem.
[5] Agradeço a Rimar Ramalho Segala e Anderson Almeida da Silva pela ajuda na transcrição anotação dos dados.
[6] Exemplos adaptados de Lakoff (1971).
[7] Exemplos adaptados de Sweetser (1990).