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Currículo como jazz: um ensaio sobre educação musical e inclusão na escola básica

 

Maristela de Oliveira Mosca[1]

Universidade do Minho/Portugal

 

Maria Dolores Molina Jaén

Centro Universitário Sagrada Família – SAFA/Espanha

 

 

RESUMO

Partimos da concepção de Currículo como Jazz, conceito construído a partir do aporte metafórico de Aoki (2005), que relaciona o currículo como plano e o currículo como experiência vivida. Apresentamos os primeiros resultados de uma investigação que pretende identificar as possibilidades de construção curricular a partir da conversação. Uma pesquisa documental e teórica para responder à seguinte questão: a partir das disposições e orientações curriculares dos documentos oficiais (o currículo prescrito) da Espanha e do Brasil, que regulamentam e norteiam a Educação Básica – especificamente o ensino de música e a inclusão escolar, é possível um currículo em ação do ensino de música pautado pela conversação e pela inclusão? Para tanto, os objetivos elencados buscaram investigar e identificar, a partir dos documentos oficiais, as concepções de currículo, escola inclusiva e educação musical. Dessa forma, apresentamos um desenho curricular em movimento, a partir da compreensão do Currículo como Jazz. Conhecer as disposições e orientações curriculares dos documentos oficiais da Espanha e Brasil sobre Currículo, Educação Musical e Inclusão nos permitiram afirmar as possibilidades de um desenho curricular a partir da conversação. Um trabalho investigativo que pretende ampliar as maneiras de ver e vivenciar o currículo, uma escola inclusiva, o ensino da música..

 

Palavras-chave: Currículo como Jazz; Educação Musical Inclusiva; Ensino de Música; Processos Metodológicos.

 

 

ABSTRACT

We start from the conception of Curriculum as Jazz, a concept constructed from the metaphorical contribution of Aoki (2005), which relates the curriculum as a plan and the curriculum as a lived experience. We present the first results of an investigation that intends to identify the possibilities of curricular construction from the conversation. A documentary and theoretical research to answer the following question: Regarding from the provisions and curricular guidelines of the official documents (the prescribed curriculum) of Spain and Brazil, which regulate and guide Basic Education - specifically the teaching of Music and inclusion in schools- is this concept of teaching music- focused on dialog and inclusion- possible and convertible? To do so, the objectives listed sought to investigate and identify, from the official documents, the conceptions of curriculum, inclusive school and music education. Thus, we present a curricular design in motion, from the understanding of the Curriculum as Jazz. Knowing the provisions and curricular guidelines of the official documents of Spain and Brazil on Curriculum, Music Education and Inclusion allowed us to affirm the possibilities of a curricular design from the conversation. An investigative work that aims to broaden the ways of seeing and experiencing the curriculum, an inclusive school, the teaching of music.

 

Keywords: Curriculum as Jazz; Inclusive Musical Education; Music Teaching; Methodological Processes.

 

INTRODUÇÃO   

As questões investigativas que norteiam as reflexões sobre a educação musical e a inclusão se pautam nas indagações sobre currículo e sua gestão na sala de aula – os processos de ensino aprendizagem, que se iniciam no currículo prescrito (o oficial, institucional) ao currículo em ação (Gimeno, 1988), onde as práticas curriculares acontecem de maneira efetiva e dão movimento ao ensino.

Nesse contexto, nos deparamos com diferentes práticas curriculares, que vão da segregação à inclusão, passando também por cenários de integração escolar. As práticas curriculares – inclusivas ou não – são reflexos de determinado desenho curricular que, por sua vez, se inspira na cultura escolar dominante e, como afirma Rodrigues (2017), o currículo pode ser compreendido como uma rotunda. Como na educação, a partir da rotunda as avenidas convergem e se vêem as prioridades e as determinâncias, um jogo de regras onde os valores se evidenciam. 

Nesse fluxo de prioridades o currículo se desenha a partir de opções e concepções sobre ensino, aprendizagem e gestão. Partimos do pressuposto de uma escola que se pretende inclusiva e que, para tal (re)construção se propõe a repensar a deficiência não como incapacidade, mas como possibilidade de se criar caminhos para o ensino, derrubando barreiras de ordem afetiva, sensorial, cognitiva ou arquitetônicas que segreguem e impeçam a inclusão.

Nos valemos, assim, de uma pesquisa dos documentos oficiais que regulamentam a educação básica e seus desdobramentos na educação inclusiva e no ensino de música, tendo a Espanha e o Brasil como objetos de investigação em sua construção curricular. Denominamos nesse trabalho educação básica os anos de escolaridade que, na Espanha, correspondem a Educação Infantil, Primária e Secundária Obrigatória; e no Brasil, Educação Infantil e Ensino Fundamental. Dessa forma, apresentamos os resultados desse estudo teórico-documental como primeira parte de uma investigação mais ampla que abarcará também o planejamento, implementação, observação e avaliação de um projeto de tarefas integradas de educação musical, tendo como parâmetros os dados coletados nesse primeiro tempo de investigação.

Ao iniciarmos uma investigação temos uma questão que nos move e nos leva à construção de hipóteses para traçar um caminho teórico-metodológico que guia a pesquisa. Neste contexto, a questão de partida que nos moveu foi: a partir das disposições e orientações curriculares dos documentos oficiais (o currículo prescrito) da Espanha e do Brasil, que regulamentam e norteiam a Educação Básica – especificamente o ensino de música e a inclusão escolar, é possível um currículo em ação do ensino de música pautado pela conversação e pela inclusão? Para responder à questão elencamos como objetivos: investigar as disposições e orientações curriculares dos documentos oficiais da Espanha e Brasil; identificar as concepções de escola inclusiva em tais documentos; dialogar sobre os pressupostos apresentados para o ensino de música na escola básica; apresentar um desenho curricular em movimento, a partir da compreensão do Currículo como Jazz; dialogar sobre possibilidades de percursos musicais inclusivos em um desenho curricular que promova a conversação, a inclusão, o trabalho em equipe, a construção do sentido e a valorização da cultura e da identidade.

O texto se desenvolve a partir dos conceitos de currículo, inclusão e ensino de música apresentados nos documentos oficiais, e a concepção de um Currículo como Jazz, metáfora construída a partir da figura desenhada por Aoki (2005), que apresenta o desenvolvimento musical movido pela conversação entre os pares para uma aprendizagem crítica, estética e original; onde a inclusão permite que todos encontrem seu lugar social e sonoro, reconhecendo o protocolo musical do entorno e do mundo vivido. 

Apresentamos também um diálogo entre as possibilidades de um percurso musical inclusivo, movido pela conversação e que se apresenta em uma proposta de desenho curricular em Jazz, que tem como eixos do desenvolvimento musical o diálogo jazzístico, na dialética entre os pares; o respeito pelo contexto e pela consciência de um porvir coletivo e a aprendizagem a partir da experiência e do compartilhamento.

 

O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS OFICIAIS SOBRE CURRÍCULO, INCLUSÃO E EDUCAÇÃO MUSICAL

As estruturas organizativas da educação na Espanha e Brasil se apresentam distintas nas denominações para os ciclos de ensino, que correspondem ao percurso educativo formal das crianças e jovens que precede a Educação Universitária. Nesse trabalho denominaremos a esses ciclos de Educação Básica.

Na Espanha, o sistema educativo compreende os níveis denominados: Educação Infantil – até os 6 anos de idade; Educação Primária, com 6 anos letivos – dos 6 aos 12 anos de idade; Ensino Secundário Obrigatório (ESO), com 4 anos letivos – dos 12 aos 16 anos de idade; e Bachillerato, não obrigatório, com 2 anos letivos – dos 16 aos 18 anos. 

No Brasil, o sistema educativo corresponde às mesmas idades da Espanha, sendo denominados de: Educação Infantil – até os 5 anos de idade; Ensino Fundamental, com 9 anos letivos (divididos em dois ciclos, o primeiro com 5 anos letivos e o segundo com 4 anos letivos) – dos 6 aos 14 anos; e o Ensino Médio, não obrigatório, com 3 anos letivos, a partir dos 14 anos. No desenvolvimento desse trabalho, priorizaremos o estudo das questões vinculadas à Educação Primária e Secundária da Espanha e ao Ensino Fundamental no Brasil.

 A Ley Orgánica para la mejora de la calidad educativa (LOMCE, 2016), compreende um conjunto de disposições que pretende melhorar as condições de toda a comunidade escolar para que os alunos e alunas obtenham e expressem seus talentos e, dessa forma, alcancem pleno desenvolvimento pessoal e profissional. De acordo com as disposições de tal lei orgânica, o currículo é compreendido como “a regularização dos elementos que determinam os processos de ensino e aprendizagem para cada etapa de ensino” (LOMCE, 2016, p. 10). Nesse sentido, os elementos que regem e integram o currículo são os objetivos de cada etapa educativa, as competências, os conteúdos, as metodologias, os padrões e resultados da aprendizagem avaliável e os critérios de avaliação. 

Ao governo espanhol cabe o desenho do currículo básico, determinando os conteúdos comuns, os padrões de avaliação e a carga horária letiva mínima do bloco das disciplinas denominadas nucleares. As escolas possuem autonomia pedagógica pelo projeto educativo do curso; de gestão, pelo projeto de gestão; e organizativa, a partir do regulamento de organização e funcionamento e a programação geral anual (LOMCE, 2016).

No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular/BNCC (BNCC, 2017, p. 7) está em sua terceira versão, sendo construída desde o ano de 2014 e que se constitui em “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica”. Sua construção foi consequência da aprovação da Lei no 13.005, de 25 de junho de 2014 (PNE, 2014), que aprova o Plano Nacional de Educação – PNE. Construído pelo Governo Federal, a BNCC orienta os sistemas na elaboração de suas propostas, já que os Estados, Distrito Federal, Municípios e Instituições Educacionais têm autonomia na construção de seus currículos, pautados nas premissas da BNCC.

Orientado nas premissas éticas, filosóficas e estéticas das Diretrizes Nacionais Gerais para a Educação Básica/DCN, a BNCC compreende o currículo como a organização das:

Experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, permeadas pelas relações sociais, buscando articular vivências e saberes dos alunos com os conhecimentos historicamente acumulados e contribuindo para construir as identidades dos estudantes (DCN, 2013, p. 112). 

Cabe ao governo brasileiro, por meio da BNCC (2017, p. 8), superar “a fragmentação das políticas educacionais”, bem como fortalecer o regime de colaboração entre Estados, Distrito Federal e Municípios, balizando a “qualidade da educação”. Dessa forma, o documento normativo pretende garantir o “direito dos alunos a aprender e a se desenvolver, contribuindo para o desenvolvimento pleno da cidadania”. Entretanto, as questões políticas e educativas que regeram a construção da BNCC não será foco de discussão desse trabalho. 

Nesse processo construtivo, a autonomia dos Estados, Distrito Federal, Municípios e Escolas se materializa nos Currículos e Projetos Políticos Pedagógicos, a partir da compreensão que “as competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos”. Ao focar os conteúdos curriculares a serviço do desenvolvimento de competências, a BNCC (2017, p. 9) “orienta para a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados”.  

Assim, podemos afirmar que os currículos devem expressar estratégias didáticas e metodológicas, bem como as mediações pedagógicas para que se mobilizem essas estratégias, promovendo um currículo em ação em consonância com o contexto vivido e as realidades do entorno.

Tais concepções marcam uma maneira de conceber o currículo como um movimento que perpassa o conhecimento de senso comum, trazido pelos alunos, e pelo conhecimento sistematizado pela humanidade, a cientifização do conhecimento (Demo, 2000). Ao conceituar currículo a partir dessa perspectiva nos documentos oficiais, fica clara a concepção de um currículo que não se pauta no acúmulo de conteúdos, transmitidos aos alunos tecnicamente para um resultado único, mas que pretende abrir possibilidades para que as escolas tenham autonomia para um desenho curricular que espelhe o contexto vivido e almeje o desenvolvimento pleno de seus alunos.

Na vivência dessa “gramática escolar”, o acesso ao conhecimento tem a função tanto de “desenvolver habilidades intelectuais”, como de construir “atitudes e comportamentos necessários para a vida em sociedade” (DCN, 2013, p. 112). Podemos, dessa forma, corroborar com Bolívar (2010, p. 156) que afirma: “redesenhar, pois, o currículo supõe definir a cultura básica comum (competências fundamentais) que todos os cidadãos devem dominar ao termino da escolaridade obrigatória”.  

Como premissa da escola contemporânea a educação é direito fundamental de todos os cidadãos e, por conseguinte, deve garantir a todos o acesso ao ambiente escolar e à aprendizagem. Desse modo, se iniciou um processo de acolhimento aos alunos com necessidades educativas especiais nas escolas regulares, assegurando o direito à diferença – de ser e de aprender.

Corroboramos com Saiz (2009, p. 12), que compreende a escola inclusiva como aquela que se abre para todos, “que não faça nenhuma distinção por razão de procedência, cor, sexo, língua, religião, discapacidade, superdotação, origem social nem qualquer outra condição”. É uma escola que reconhece a diferença, que elimina as barreiras (sociais, emocionais, físicas e curriculares) que impeçam que todos aprendam, bem como valoriza a transformação e a diversidade. 

Para concretizar tais necessidades e caminhar rumo a uma escola democrática, inclusiva e emancipadora, reflexo de uma sociedade diversa, os Estados se valem de leis, normativas e orientações para a construção e práticas curriculares.  

Na Espanha, a Ley Orgánica 2/2006 de 3 de mayo, de Educación (BOE, 2015, p. 51), trata em seu artigo 71 dos princípios que regem a educação dos alunos com necessidade específica de apoio educativo – os alunos com necessidades educativas especiais. A disposição deixa de maneira clara a necessidade de as administrações educativas disporem “dos meios necessários para que todos o alunado alcance o máximo desenvolvimento pessoal, intelectual, social e emocional [...]”. Dessa forma, as capacidades pessoais dos alunos que necessitam de atenção educativa diferente são valorizadas e o desenvolvimento é meta da educação para todos.  

A escolarização do alunado que apresenta necessidades educativas especiais será regida pelos princípios de normalização e inclusão e assegurará sua não discriminação e a igualdade efetiva no acesso e permanência no sistema educativo, podendo introduzir-se medidas de flexibilização das distintas etapas educativas, quando se considere necessário (BOE, 2015, p. 52).

No Brasil, os direitos dos alunos com necessidades educativas especiais – denominado público alvo da educação especial – se efetiva a partir do pressuposto de equidade, pressupondo que:

A instituição escolar seja deliberadamente aberta à pluralidade e à diversidade, e que a experiência escolar seja acessível, eficaz e agradável para todos, sem exceção, independentemente de aparência, etnia, religião, sexo ou quaisquer outros atributos, garantindo que todos possam aprender (BNCC, 2017, p. 11).

Consequentemente, a adoção de medidas necessárias para a efetiva participação de todos os alunos em igualdade de condições e oportunidades deve ser assegurada pelo Estado, permitindo o desenvolvimento pessoal, social e profissional sem restrições à condição de qualquer deficiência.  

Nessa perspectiva, se valoriza a diversidade e se pretendem eliminar as barreiras para a aprendizagem, colocando foco na organização do ambiente e do currículo para atender a todos os alunos, com a implementação de um Atendimento Educacional Especializado/AEE, normatizado pela Resolução no 4, de 2 de outubro de 2009, e que institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial (DCN, 2013, p. 302), que tem o AEE como:

Função complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem. 

As leis, ordens e diretrizes dos dois países em questão sistematizam, dessa forma, uma concepção de escola inclusiva, que rejeita a homogeneidade, reconhece a diferença e valoriza a diversidade. Uma escola inclusiva que, como sinaliza Mantoan (2013, p. 4), acolha a todos os alunos e impeça que o ensino e aprendizagem sejam reduzidos a “currículos adaptados, objetivos educacionais reduzidos, critérios de avaliação abrandados, terminalidade específica para certificação escolar, facilitação de atividades”, tendo em conta que não decidimos o que os alunos têm ou não capacidade de aprender e, dessa forma, devemos focar nas possibilidades e não deficiências.

Neste percurso investigativo, temos nos documentos oficiais da Espanha e do Brasil a música, tratada como linguagem de conhecimento e reconhecida como patrimônio da humanidade, sistematizada ao longo do tempo, como expressão estética do pensamento, ideias e sentimentos, tendo a organização sonora como elemento de comunicação. Por consequência, seu ensino é obrigatório nas instâncias da educação básica espanhola e brasileira.

Na Educação Primária do sistema educativo espanhol, a Educação Artística faz parte das disciplinas específicas e se divide em dois blocos: a Educação Musical e a Educação Plástica. De acordo com o Real Decreto 126/2014, de 28 de febrero (BOE, 2014, p. 19401), as duas disciplinas, juntas, permitem aos alunos “entender, conhecer e investigar” os signos e códigos dessas linguagens, permitindo “o desenvolvimento da atenção, a percepção, a inteligência, a memória, a imaginação e a criatividade”. A partir do conhecimento plástico e musical os alunos também desfrutam “do patrimônio cultural e artístico”, valorizando suas contribuições para o desenvolvimento da humanidade.  

A Educação Musical se divide em três eixos estruturantes, que norteiam a organização do trabalho: “a escuta, em que os alunos irão investigar as possibilidades do som”; a interpretação musical, e o desenvolvimento de habilidades na manipulação e utilização de diferentes fontes sonoras; e a música, o movimento e a dança, que tem como objetivo “o desenvolvimento de capacidades expressivas e criativas a partir do conhecimento e da prática da dança” (Ibidem).

Seguindo os mesmos fundamentos, também como disciplina específica, é denominada Música na ESO, que tem como objetivo central, de acordo com o BOE (2015, p. 509):

Dotar os alunos e alunas de um vocabulário que permita a descrição de fenômenos musicais, uma compreensão da linguagem musical como meio de expressão artística, uma sensibilidade para a expressão musical e o entendimento da música como um fenômeno imbricado na história e na sociedade.

Na ESO, os elementos do currículo de música se organizam em quatro eixos fundamentais: interpretação e criação, escuta, contextos musicais e culturais e música e tecnologia. Os eixos se relacionam entre si e permitem uma organização cognitiva dos processos de ensino e aprendizagem musical, permeados pela experiência e fazer artísticos. O currículo do ensino de música, da Educação Primária e Secundária, se organiza por critérios de avaliação que devem se desenvolver ao longo do ano letivo de maneira articulada, contextualizada e interdisciplinar.  

No Brasil, depois de uma lacuna de quase trinta anos, desde a aprovação da Lei no 11.769/2008 (Brasil, 2008), que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica, a música volta a ser componente obrigatório, mas não exclusivo, da área de linguagens-Arte. 

As quatro linguagens que fazem parte do componente curricular Arte – Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, reconhecidas como áreas de conhecimento e patrimônios culturais da humanidade, são compreendidas como linguagens que “articulam saberes referentes a produtos e fenômenos artísticos”. Assim sendo, “envolvem as práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas”. Nesses processos de fazer, mostrar e ensinar arte, “a sensibilidade, a intuição, o pensamento, as emoções e as subjetividades se manifestam como formas de expressão” (BNCC, 2017, p. 151).

A música, como linguagem de conhecimento, propicia o encontro com um mundo expressivo diversificado, recheado de experiências e reflexões que aproximem essa forma de expressão estética à realidade do aluno e possibilite diferentes interpretações. Nesse caminho rumo ao desenvolvimento musical, os processos de criação devem ser valorizados e o produto ser compreendido como etapa dos processos do ensino e aprendizagem de música, promovendo um ambiente criativo onde o aluno possa conhecer, desenvolver, experimentar, perceber e se expressar. 

Os âmbitos de ensino e aprendizagem da música articulam seis dimensões de conhecimento que devem ser trabalhadas de forma intrínsecas e simultâneas: a criação, uma dimensão processual que promove a apreensão dos conceitos vivenciados; a crítica, que se compreende como uma apreciação reflexiva, que “articula uma ação e pensamentos propositivos”; a estesia, que remete à experiência sensível do espaço, do tempo, do som, da ação, da imagem, do próprio corpo e dos materiais, articulando a “sensibilidade e a percepção, tomadas como forma de conhecer a si mesmo, o outro e o mundo”; a expressão, que emerge da experiência musical; a fruição, que se refere ao “deleite, ao prazer, ao estranhamento e à abertura para se sensibilizar durante a participação em práticas artísticas e culturais”; e a reflexão, o exercício do pensamento, da apreensão de sentidos e da constituição de argumentos sobre a experiência (BNCC, 2017, p. 152-153).

Os Estados, Distrito Federal, Municípios e Escolas têm autonomia para gerir o ensino de música e distribuí-los nos anos de escolaridade, articulando-a com as outras linguagens do componente curricular Arte. 

 

UM DESENHO CURRICULAR EM JAZZ: POSSIBILIDADES A PARTIR DE ORIENTAÇÕES DOCUMENTAIS

O currículo, polissêmico em seus conceitos, pode ser compreendido como um dispositivo que concretiza os processos educativos. O desenho curricular precede a prática e é constituído a partir de critérios de relevância do conhecimento a ser compartilhado, da seleção desse conhecimento e das estratégias para sua ação.

O Jazz, como estilo musical, tem seus princípios estruturais oriundos da teoria musical clássica, mas difere em sua composição e execução pela conversação e improvisação, marcadamente suas características estilísticas. A metáfora do Currículo como Jazz foi concebida a partir do desenho metafórico de Aoki (2005) e compreende o currículo como obra concebida a partir da realidade vivida. 

Nessa concepção da obra (o currículo), a conversação é compreendida como o respeito às vozes que compõem os processos de planejamento, escrita e execução curricular – é a permissão em ouvir, falar, compartilhar. Uma conversação complexa, termo cunhado por Pinar (2007), o currículo se torna um diálogo jazzístico a partir da interação entre os pares, no respeito pelo contexto e na consciência de um porvir coletivo. Assim, a conversação complexa no/do currículo parte de um contexto, de uma situação que seja existencial, concreta e que reflita o conjunto de aspirações da comunidade escolar.

De acordo com os documentos curriculares oficiais da Espanha e Brasil, a conversação se ratifica no momento em que se favorece “uma visão interdisciplinar” do currículo, que possibilite “uma maior autonomia à função docente, de forma que permita satisfazer as exigências de uma maior personalização da educação” (BOE, 2014, p. 19350).

Os processos educativos não se constituem somente por ações isoladas e, a partir das proposições da BNCC (2017, p. 12), cabe ressaltar que a construção curricular decida sobre “formas de organização interdisciplinar dos componentes curriculares”, fortalecendo a “competência pedagógica das equipes escolares”, na legitimação de “estratégias mais dinâmicas, interativas e colaborativas em relação à gestão do ensino e da aprendizagem”.

Tais proposições nos permitem planejar um desenho curricular inclusivo, onde a música e seu ensino aconteçam de forma a valorizar a diversidade, construir conhecimentos significativos e desenvolvimento de competências musicais básicas, já que “a intervenção educativa deve contemplar como princípio a diversidade dos alunos, entendendo que deste modo se garantirá o desenvolvimento de todos eles, tanto quanto uma atenção personalizada em função das necessidades de cada um” (BOE, 2014, p. 19355).

A partir dessa perspectiva inclusiva, vemos que um Currículo como Jazz abarca os pressupostos que descreveremos a seguir:

Todos podem aprender juntos, já que “a diversidade fortalece o grupo e oferece a todos os seus membros maiores oportunidades de aprendizagem” (Sánchez, 2003, p. 205). Para tal pressuposto trazemos a figura metafórica da Jam Session que, segundo Menezes (2011, p. 129), pode ser definida como “um encontro musical de caráter recreativo e efêmero entre músicos auto-escolhidos, [...]. Apesar de informal é uma reunião altamente estruturada socialmente”.

Assim, a Jam Session se torna o currículo em ação, centrado na partilha a partir de um encontro jazzístico, “um meio privilegiado de transmitir a linguagem […] através de processos orais e imitativos”, uma “aprendizagem social”, marcada pela importância que se dá às “condições pedagógicas para a sua inclusão nos currículos” (Menezes, 2011, p. 132). Nos tempos vivenciados da aprendizagem musical o trabalho em equipe e a colaboração dão movimento aos processos de ensino e aprendizagem, já que a alternância de papeis proporciona a liderança a partir da introdução de novas ideias, alimenta os momentos solo e encoraja a troca entre os solistas. 

Respeito aos direitos de todos, de participar, de aprender de acordo com suas possibilidades e tempo, bem como de ser respeitado em suas características físicas, intelectuais e culturais. Tais regras “deveriam refletir a filosofia de tratamento justo e igualitário e um respeito mútuo entre os alunos, bem como entre outros membros da escola e da comunidade” (Sanchéz, 2003, p. 205).

O professor assume o papel de mediador, orientando as atividades de acordo com as necessidades e características individuais e assumindo ações emancipatórias. Na Jam Session inclusiva “se promove apoio aos alunos para ajuda-los a conseguir com êxito os objetivos” propostos, que se ajustam ou expandem quando necessário, atendendo às necessidades de todos (Sanchéz, 2003, p. 206). 

O exercício de apoio coletivo, entre alunos e alunos, e professores e alunos. Consequentemente, os apoios acontecem dentro das aulas e promovem o diálogo sobre coletividade, colaboração, processos de trabalho e dificuldades de aprendizagem pois, como afirma Sanchéz (2003, p. 206), “tratam de que as capacidades de cada um de seus membros, sejam as que forem, sejam apreciadas e apoiadas”.  

Adequar o currículo e as metodologias à diversidade dos alunos, reconhecendo a necessidade de ajustes ou modificações nos diferentes elementos que fazem a escola em seus aspectos físico, estrutural, material e de recursos humanos. Como afirma Sanchéz (2003, p. 211), as adequações curriculares e adaptações metodológicas têm como âmbito os alunos que compõem os grupos de aprendizagem, bem como “os profissionais que nele desenvolvem o seu trabalho e todos os elementos físicos e materiais necessários”.  

Isto posto, às administrações educativas cabe fomentar “a qualidade, equidade e inclusão educativa” dos alunos com necessidades educativas especiais, bem como “a igualdade de oportunidades”, a partir de “medidas de flexibilização e alternativas metodológicas, adaptações curriculares”, enfim todas as medidas que sejam necessárias para alcançar uma educação de qualidade e em igualdade de oportunidades (BOE, 2014, p. 19356).

Um currículo em movimento, que seja lugar de transformações para a construção de um conhecimento que se evidencie na prática musical, nas relações e em toda a complexidade que permeia os processos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, o ensino de música não se pauta em uma lista de conteúdos, no livro texto ou produto como reprodução, mas no desenvolvimento de habilidades musicais, um encontro prazeroso de expressão de sentimentos e de percepções do mundo a partir dos sons e movimentos.

 

TAREFAS INTEGRADAS: POSSIBILIDADES INCLUSIVAS E INTERDISCIPLINARES

A partir da investigação documental, em interlocução teórica e apresentação de um Currículo como Jazz, temos a proposição de uma maneira dinâmica de ler e dar vida ao currículo, que pode se materializar a partir de uma proposta de Aprendizagem Baseada em Projetos/ABP – que denominamos Tarefas Integradas. Vemos assim uma perspectiva de desenho curricular que torna os processos de ensino e aprendizagem significativos e desafiantes, a partir do momento em que a investigação, a conversação e a improvisação são conceitos-chave nessa maneira de viver o currículo.  

Na construção de uma escola que se pretenda dialógica, democrática e inclusiva compreendemos o currículo como texto (Pinar, 2014), texto discursivo e dialógico que pretende construir significados das aprendizagens escolares. A música, linguagem estética e expressiva, é carregada de impulsos que podem ser representados a partir de tarefas integradas. Elas permitem experienciar a música de dentro – compreendendo e dando significado ao fazer musical.

As tarefas integradas procuram estabelecer um vínculo entre as competências a serem construídas, os saberes oriundos das diferentes culturas e a ampliação dos repertórios sônicos, históricos e conceituais dos alunos a partir de diferentes abordagens linguísticas. Deste modo, a partir da triangulação do ser-fazer-saber musicais, que tem como eixos a apreciação musical, a contextualização da obra e o fazer artístico, podemos desenhar tarefas integradas que priorizem o ensino de música a partir da experimentação – onde cantar, tocar, dançar e criar façam parte das aulas de música.

Tendo como ponto de partida os critérios de avaliação, as competências, que auxiliam os professores nos planejamentos das tarefas integradas, para que o currículo seja acessível a partir de ações flexíveis, um Currículo como Jazz supõe “estabelecer novas formas de organização que respondam a todos os alunos, e que permitam ao professorado trabalhar junto na resolução de problemas [...]”, como afirma Sánchez (2003, p. 183). O autor destaca também um desenho curricular inclusivo que apresenta a escola como “o reflexo de uma sociedade plural”, intercultural e diversa, onde o “direito de ser diferente, aprendendo a conviver com a diferença e a pluralidade” sejam as bases para um ensino musical significativo. 

 

PERSPECTIVAS NA CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA INCLUSIVA E INTERDISCIPLINAR

Ao iniciarmos um trabalho investigativo, os primeiros rascunhos nos trazem a dimensão daquilo que almejamos. Consequentemente, o percurso vai se desvelando na medida em que os objetivos são traçados. 

Nessa primeira parte do trabalho, conhecer as disposições e orientações curriculares dos documentos oficiais da Espanha e Brasil nos permitiu uma pesquisa documental acerca das concepções e pressupostos postos nos documentos sobre currículo, inclusão e educação musical na escola básica. A partir daí um desenho curricular em movimento – um Currículo como Jazz foi apresentado em diálogo teórico com autores de referência, permitindo uma interlocução com um desenho curricular que pretende promover a conversação, a inclusão, o trabalho em equipe, a construção do sentido e a valorização da cultura e sociedade – as tarefas integradas.

Na proposição de um Currículo como Jazz pudemos compor um diálogo sobre as possibilidades dos percursos inclusivos, que se regem por um desenho curricular que tenha na conversação, inclusão, trabalho em equipe, construção do sentido e valorização da cultura e identidade seus pressupostos. Por consequência, esse desenho tem como premissa a construção de uma escola inclusiva, interdisciplinar e democrática.

As fronteiras que se estabelecem no processo poderão ser observadas a partir do momento em que o desenho curricular – as tarefas integradas – se materializem no trabalho cotidiano, desde o planejamento do projeto, sua realização e avaliação. Dessa forma, nossa proposição chega a segunda parte da investigação, que pretende dar seguimento ao percurso investigativo proposto nesse trabalho, quando a revisão teórica e documental, bem como o estudo de obras referenciais nos permitiram corroborar a hipótese de que a partir das orientações e disposições curriculares dos documentos oficiais (o currículo prescrito) da Espanha e do Brasil, que regulamentam e norteiam a Educação Básica, o ensino de música e o atendimento aos alunos com necessidades educativas especiais é possível desenhar um currículo em ação pautado pela conversação e pela inclusão. 

Ao delimitarmos as possibilidades desse trabalho investigativo nos propomos a planejar, implementar, observar e avaliar um Projeto de Educação Musical articulado com outros saberes disciplinares que pressuponha a música como linguagem não verbal, que se expressa a partir das sonoridades oriundas do ser-saber-fazer. A partir dessa tarefa integrada e seus desdobramentos, nos será possível traçar as perspectivas e as fronteiras encontradas nos processos de aprender e ensinar música a partir da conversação e inclusão, abrindo nossos olhares para as realidades educativas da Espanha e Brasil, permitindo um elo de ação a partir das proximidades e diferenças. Um trabalho investigativo que pretende ampliar as maneiras de ver e vivenciar o currículo, a compreensão de uma escola inclusiva e a aproximação do ensino da música com a realidade vivida. 

 

REFERÊNCIAS

Aoki, T. T. (2005). Sonare and Videre. In Pinar, W. F.; Irwin, R. L. (Eds.). A curriculum in a new key: the collected works of Ted T.

Aoki. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.

Base Nacional Comum Curricular/BNCC. (2017). Brasil, Ministério da Educação.

Bolívar, A. (2010). Competencias básicas y currículo. Madrid: Síntesis.  

Demo, P. (2000). Educação e conhecimento: relação necessária, insuficiente e controversa. Petrópolis: Vozes.

Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica/DCN. (2013). Brasil, Ministério da Educação.

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