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A “ética” do projeto escola sem partido: uma questão de inclusão?

 

Mônica Pereira dos Santos[1]

Renato José de Oliveira[2] Letícia Calhau Freitas[3]

PPGE – UFRJ

 

RESUMO

Este trabalho busca analisar o conceito de ética subjacente ao Projeto de Lei 193 de 2016 (PL 193/16), originado do Programa Escola Sem Partido (PESP) com base na Teoria da Argumentação e na perspectiva Omnilética. Nosso objetivo é avaliar em que medida a ética ali percebida se mostra condizente (ou não) com os princípios inclusivos relativos a certos direitos fundamentais garantidos em nossa Constituição, em particular o direito à educação. Para isso, analisaremos o conceito de ética utilizado no referido PL e avaliaremos se e/ou como eles contribuem com o movimento mundial em defesa de uma educação para todos. Em um cenário contemporâneo de rejeição e intolerância às diferenças, torna-se necessário analisar e argumentar as propostas parlamentares que estão sendo feitas para a educação brasileira e de que forma elas consensuam ou discendem da temática da inclusão.

Palavras-chave: inclusão; ética; Teoria da Argumentação; Perspectiva Omnilética.

 

ABSTRACT

This paper seeks to analyze the ethical concept underlying the Bill 193 of 2016 (PL 193/16), originated from the "Programa Escola Sem Partido" (PESP) based on the Theory of Argumentation and the Omnilectic perspective. Our objective is to evaluate in which way the ethics perceived are consistent (or not) according to the inclusive principles regarding certain fundamental rights guaranteed in our Constitution, particularly the educational ones. To do this, we will analyze the concept of ethics as presented in the PL and evaluate how they contribute to the Education for all Movement. In this contemporary scenario of rejection and intolerance of differences, it becomes necessary to analyze and argue the parliamentary proposals being made for the Brazilian education and how they address the inclusion theme.

Keywords: inclusion; ethic; Theory of Argumentation; Omniletic Perspective

 

INTRODUÇÃO   

O Projeto de Lei 193 de 2016 é um dos desdobramentos do Programa Escola Sem Partido (ESP)4, criado em 2004 com o objetivo de se opor ao chamado “fenômeno da instrumentalização do ensino para fins político-ideológicos, partidários e eleitorais”. O ESP foi criado no contexto brasileiro, pelo procurador da República Miguel Nagib, inspirado por projeto americano semelhante chamado No Indoctrination. Na fala de Nagib, uma das motivações foi o cenário político do momento, em que, segundo sua avaliação, as escolas contribuíam para a manutenção de uma educação partidária:

O movimento surgiu em 2004, quando a gente se deu conta de que as escolas estavam sendo usadas para doutrinação. Criou-se uma mentalidade progressista, favorável ao PT, que auxiliou a manutenção deles no poder. Um dos pontos é que em sala de aula, o professor não pode ter liberdade de expressão. (Miguel Nagib em entrevista concedida ao site do jornal O Dia Brasil, em 06-09-2015).[4]

O Programa defende, explicitamente, a necessidade de a sociedade perseguir uma neutralidade nas práticas pedagógicas, como se vê abaixo, em trecho extraído do site do Programa, ao se referir ao papel da escola:

Sabemos que o conhecimento é vulnerável à contaminação ideológica e que o ideal da perfeita neutralidade e objetividade é inatingível. Mas sabemos também que, como todo ideal, ele pode ser perseguido.

(http://www.escolasempartido.org/quem-somos).

Em nosso ver, não haveria problema algum em que segmentos da sociedade civil se manifestassem favorável ou criticamente a fatos, iniciativas ou serviços sociais. Afinal, supostamente, vivemos em uma sociedade democrática. O que nos causa espécie com a crítica tecida por este movimento, entretanto, é a própria contradição que ele comete, pois ao mesmo tempo em que critica o que seria uma forma, digamos, panfletária de educação, exerce a crítica utilizando-se da mesma estratégia que supõe que a escola faz: o discurso panfletário. 

Ao longo de cada espaço do site percebe-se um tom nada neutro de crítica à suposta parcialidade políticoideológica que o PESP afirma existir na educação como um todo. No afã de defender uma improvável neutralidade quando se trata de práticas educacionais, seus criadores e seguidores manifestam-se de forma engajada, e até mesmo bastante passional quanto à sua causa.

Uma vez mais, nada haveria de errado na defendida imparcialidade da escola, se fosse apenas uma opinião, tampouco na passionalidade do tom usado, se fosse apenas uma forma de expressão do grau de convicção em certa crença. No entanto, não nos parece ser isto que acontece, pois o Programa, além de manifestar sua opinião passionalmente, conclama seus seguidores a um movimento de luta contra a suposta parcialidade educacional por meio de atos e de iniciativas junto a parlamentares para que formulem projetos de Lei, que nos parecem, no mínimo, opressores e que vão em direção radicalmente oposta a uma série de conquistas que vários movimentos sociais têm levado a cabo ao longo das últimas décadas, como por exemplo, a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e o direito de ser com dignidade.

A proposta de adaptação dos princípios do ESP para um Projeto de Lei surgiu em 2014, pelo Vereador Carlos Bolsonaro, do PSC, que auxiliou na elaboração do anteprojeto para o âmbito municipal, na cidade do Rio de Janeiro. Como resultado dessa iniciativa, surgiu o primeiro Projeto de Lei Nº 867/2014 que incluía o ESP na educação municipal do Rio de Janeiro. Este PL foi apresentado na Câmara dos Deputados em março de 2015, com o mesmo e texto e ao Senado Federal, com o número 193. Entre os anos de 2014 e 2016, o movimento expandiu-se, de forma que tramitaram, em diversos estados, 11 projetos para a inclusão do ESP nos âmbitos municipais e estaduais. 

Que tipo de ética esses projetos querem difundir? Como se “encaixam” nos preceitos éticos implícitos nas políticas públicas contemporâneas que defendem uma sociedade inclusiva, uma escola inclusiva, um mundo e instituições sociais para todos? Que impactos isto pode causar, em termos sociais, a médio e longo prazo, caso uma proposta como esta seja mesmo aprovada como lei? Intrigados com estas questões, e cientes de que a “boa” ética é aquela que busca o diálogo, e não o silenciamento, optamos por realizar a análise aqui proposta e, em assim fazendo, oferecermos uma crítica construtiva e dialógica sobre o assunto. Na medida em que o conteúdo desses projetos é muito semelhante, optamos por analisar o PL 193/2016, de autoria do Senador Magno Malta (PR/ES), buscando refletir sobre os sentidos dados à temática da ética e da inclusão, assim como levantar as possíveis tensões entre o sentido destas categorias no PL e nas políticas públicas já existentes.

Iniciaremos apresentando nossos referenciais de análise, a perspectiva Omnilética e a Teoria da Argumentação, e seu necessário entrelace ao apresentarmos nossa definição de ética e inclusão. Em seguida, realizaremos a análise omnilético-argumentativa sobre os sentidos desses conceitos no Projeto de Lei 193/2016 e em outras políticas públicas de educação, tendo em vista completarmos nossa análise.

 

A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E A PERSPECTIVA OMNILÉTICA: NOSSA DEFINIÇÃO DE ÉTICA

A teoria da argumentação desenvolvida por Chaïm Perelman e Lucie Obrechts-Tyteca durante a década de 50 do século passado toma como parâmetro o não distanciamento em relação à realidade factícia, o que significa dizer que no plano ético não cabe deixar crenças e valores morais à margem dos processos argumentativos que visam estabelecer  normas de conduta. Nessa perspectiva, a abordagem desenvolvida pelos dois autores se contrapõe aos pontos de vista fixos, adotando uma postura aberta e marcada pela noção do razoável. Assim, “Se o racional é ligado à ideia de verdade, portanto de unicidade, o mesmo não se dá com o razoável, que é uma noção mais vaga, socialmente condicionada, e que não leva a uma solução única, mas a uma pluralidade de soluções aceitáveis em dado meio” (Perelman, 2005, p. 293).

A razoabilidade é própria dos indivíduos que vivem em sociedade e são influenciados pelas regras que esta sanciona. Por outro lado, nunca temos plena certeza de quando nos encontramos perante uma regra universalmente válida. Amiúde, o que podemos constatar efetivamente é o processo de universalização progressiva de alguns princípios morais, o que permite formular, para o conjunto da humanidade, princípios de ação razoáveis. A chamada universalização progressiva dos princípios morais leva em consideração o conceito de adesão dos auditórios, ou seja, daqueles a quem o discurso é dirigido. Tal adesão representa uma predisposição para a ação, não implicando o fazer incondicional do que quer que seja.

A ética se assenta, portanto, sobre a noção de legitimidade social que é construída e não imposta. Nessa perspectiva, Perelman busca se afastar tanto de um racionalismo dogmático quanto de um empirismo meramente factualista. Propõe a dialética entre os princípios formais, de natureza abstrata, e os juízos de valor concretos partilhados por diferentes grupos sociais. Tal dialética, que deve ser compreendida no sentido de um amplo diálogo, objetiva promover a complementaridade entre os princípios e os juízos, de tal modo que sempre que o princípio parecer distante demais da realidade vivida, o juízo atuará no sentido de lhe conferir materialidade. E sempre que o juízo for estreito demais, o princípio atuará no sentido de ampliá-lo.

O modelo ético perelmaniano emerge do direito e de suas aplicações nas sociedades ocidentais e se baseia no debate franco entre os contraditórios, na ponderação e na razoabilidade, buscando trilhar um caminho alternativo para enfrentar o dualismo que separa a razão da vontade, a reflexão da ação, o sujeito do objeto.  

A perspectiva Omnilética é um neologismo construído por Santos (2012) e pressupõe que a vida humana e social pode ser compreendida a partir de três categorias, que se entrelaçam: (a) uma tridimensionalidade de culturas, políticas e práticas; em jogo (b) dialético e (c) complexo. A tridimensionalidade baseia-se nas ideias de Booth e Ainscow (2011), para quem culturas referem-se a valores construídos ao longo da criação social de cada sujeito; políticas ligamse aos arranjos operacionais que se constroem institucionalmente no sentido de apoiar dados valores; e práticas refletem tudo o que se é e faz. 

Para os autores supra, culturas seria uma dimensão basilar, da qual políticas e práticas dependem e se originam. Na Omnilética, entretanto, as três dimensões possuem o mesmo peso, sendo possível que qualquer das três, dependendo de como se as analisa, assumem predominância sobre as outras em dados momentos, predominância esta sempre temporária, dado o movimento dialético da vida, que faz com que, a cada novo olhar, quaisquer das outras duas assumam a “predominância da vez”.   

Santos (2013) acrescenta ainda, quanto à dimensão das políticas, que ela refere-se não apenas aos arranjos operacionais, como também às intenções ligadas a cada decisão e ato operacional. A autora complementa dizendo que políticas podem ou não refletir culturas, assim como originar certas práticas, contraditórias ou não. Igualmente, culturas podem gerar políticas e práticas que se coadunam, ou não. E práticas podem influenciar políticas e alterar, historicamente, culturas, de formas tanto convergentes quanto divergentes.

A categoria dialética na perspectiva Omnilética apoia-se na concepção lukacsiana (Lukács, 2010) de dialética, segundo a qual a realidade é compreendida em uma totalidade que se desdobra infinitamente em micro totalidades, ao mesmo tempo em que se projeta em macro totalidades, de forma que cada micro e macro totalidade seria uma parte de totalidades maiores, ad continuum. É o movimento e dinâmica históricos que darão o tom da dimensão macro ou micro das totalidades nas quais a vida se faz. Na Omnilética, a realidade é sempre cultural, política e prática, ao mesmo e um só tempo, constituindo-se, elas mesmas, em aspectos (partes) de totalidades, micro e macro, que se inter-relacionam contrária e/ou convergentemente.

A categoria da complexidade na perspectiva Omnilética é o que permitirá que, por meio do princípio da incerteza (Morin, 1977), compreendamos que as relações dialéticas entre e das culturas, políticas e práticas, por sua própria dinamicidade em jogos de oposição por contrários e convergências, nunca são finais. Em outras palavras, nenhuma análise omnilética apresenta um quadro final da realidade, mas um quadro provisório, sempre em andamento, na medida em que não há como prever o encadeamento histórico de cada relação investigada e seus resultados. Podese, na melhor das instâncias, imaginar tantas situações quantas possível ao olhar analítico em dado momento, mas sempre haverá uma “porta de possibilidades” abertas, as quais ainda não podem ser previstas, embora possam ser consideradas em sua probabilidade potencial.

Assim, pensar e agir eticamente a partir da perspectiva Omnilética implica reconhecer e analisar culturas, políticas e práticas neste jogo complexo e dialético, continuamente. Deste modo, e a título de exemplo, no que tange ao assunto foco deste artigo, omnileticamente, detectamos um pressuposto (da ordem das culturas) de que as práticas docentes não são neutras, e que tal falta de neutralidade constitui uma transgressão (da ordem das práticas) a uma ética que, segundo nossa perspectiva, mais se aproxima de um tipo de cultura rígida, em que a contradição e o diálogo, nas ações do dia a dia (práticas), não são valorizados (ou mesmo permitidos). 

Neste sentido, a “saída” proposta, como se verá mais adiante, é adotar como prerrogativa (da ordem política) não abordar questões morais no conjunto do ensino, mas “varrê-las” para uma disciplina específica, de caráter facultativo. As questões dialéticas e complexas que perpassam esta situação, em nosso olhar omnilético, residem em uma série de observações. Por exemplo, podemos perguntar se o professor “fazer a cabeça” constitui, efetivamente, uma prática parcial e, como faz sugerir o site, antiética e imoral; se o professor faz mesmo a cabeça de alguém, como se os alunos fossem tábuas rasas em cujas cabeças as orientações fossem simplesmente depositadas; se “fazer a cabeça” constitui mesmo uma atitude que denota ausência de respeito próprio do professor; e se isso seria suficiente para impedir que fosse respeitado pelos alunos; se o professor é mesmo, ou ainda, se precisa ser, a autoridade máxima na sala, e assim sucessivamente. Estes questionamentos sobre culturas, políticas e práticas em jogo é tão dialético quanto complexo porque aponta para concepções que estão simultaneamente presentes, seja de fato, seja virtualmente, concepções estas que se apresentam ora como complementares, ora como contrárias, apesar de originarem-se (ou talvez porque se originam) de uma mesma fonte.

Deste modo, o que aqui une a Teoria da Argumentação com a perspectiva Omnilética é o tema da ética e o fato de que, em ambas perspectivas, no plano ético, o que a teoria da Argumentação considera por crenças e valores (na Omnilética, considerados como da dimensão das culturas) fazem parte dos processos argumentativos (que na Omnilética seriam da dimensão das práticas) que visam estabelecer normas de conduta (as quais, omnileticamente, são da ordem das políticas). 

Outro aspecto que as une é o da dialética, a qual, ainda que diferenciadamente definida para cada perspectiva, se complementam, pois como dito acima, se na Teoria da Argumentação ela é definida como uma prática dialógica, na Omnilética esta dialogicidade se verifica como totalidades cujas “etapas” (partes) configuram micro totalidades que historicamente vão se confirmando por meio da consideração de contrários, no intuito de superar o pensamento binário, dualista, que limita a compreensão da vida a uma visão polarizada do “isto OU aquilo”. Teoria da Argumentação e perspectiva Omnilética, assim, investem na compreensão da vida em uma visão exponencialmente aditiva e conectada: “E isto E aquilo”.

 

A ÉTICA NO PROJETO DE LEI 193/2016

O Projeto de Lei 193 de 2016 prevê a inclusão, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN, nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), dos preceitos do ESP. A questão central deste projeto de lei é a ideia de que alunos e alunas são auditórios cativos[5] diante de professores e professoras e que por isso se faz necessário definir os limites da atuação dos profissionais da educação.

Art. 5º. No exercício de suas funções, o professor: I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

(PL193/16).

O PL 194/16 defende que a atuação do professor deva ter limites éticos e jurídicos sob pena de responsabilidade e punição e que os princípios do ESP devem servir de orientadores da atuação de professores e professoras. O projeto institui, entre outros princípios para a educação nacional, o do direito da família sobre a educação moral dos alunos.

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:

V - respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. (PL193/16).

Em termos da teoria da argumentação, podemos dizer que os professores são oradores que têm influência sobre seus alunos, mas nem por isso ganham a adesão incondicional deles. Na condição de auditório, o aluno é sempre juiz daquilo que lhe é transmitido e seu julgamento depende não só da relação mantida com os professores, mas também com outros atores sociais (família, grupo religioso, grupo esportivo, membros de suas redes sociais, etc.), os quais, como oradores, também veiculam discursos e estes não são necessariamente convergentes entre si. 

Dito omnileticamente, professores, alunos, e quaisquer outros sujeitos da escola são permeados por culturas (valores em ação), políticas (intencionalidades, arranjos operacionais, decisões) e práticas (ações) que se relacionam dialética e complexamente, de forma que torna-se impossível o simples “fazer de cabeça” de um grupo supostamente mais “forte” ou esclarecido sobre outro. Todos exercem influências, uns sobre outros, alterando, em direções diversas, convergentes e divergentes, as culturas, políticas e práticas de todos.

Em continuidade ao destaque dado às ocorrências em que se faz referência à educação moral, percebemos que ela está presente no texto e é associada diretamente ao papel e dever da família. A respeito disto, a lente omnilética oferece a possibilidade de várias leituras de culturas, políticas e práticas em jogo dialético e complexo. Uma forma de analisar seria assumir que aqui encontra-se uma cultura que vê fragmentadamente os saberes incorrendo na adoção de uma política de suspensão de conteúdos e práticas escolares, o que seria tanto dialético quanto complexo por tratar-se de uma posição que se distancia das prerrogativas legais do momento, ao mesmo tempo em que pode deixar entrever a troca de instâncias de responsabilidade pelo ensino da cidadania. Outra forma seria ver que trabalhar questões morais em disciplinas escolares não necessariamente impede a família de exercer seu direito a uma educação moral e religiosa conforme às suas convicções.  Poderíamos, ainda, contestar a ideia implícita de que a educação moral na escola desvirtua o cidadão, mas se o fizesse, ainda assim, poder-se-ia considerar a relatividade dos olhares para os quais dado fenômeno fosse considerado falta de virtude. 

Nos marcos da dialogia proposta pela Teoria da Argumentação, cabe dizer que a formação moral do educando é um processo marcado pelo confronto entre argumentos a favor e contra alguma coisa. Em vista disso, não ter virtude ou não se orientar por ela não pode ser tomado como algo absoluto, cabendo aos envolvidos examinar conjuntamente as chamadas situações problema a fim de encontrar alternativas razoáveis para solucioná-las. Tais alternativas demandam a negociação entre a família, os professores e os estudantes, afastando-se de qualquer tipo de imposição resultante da vontade exclusiva de algum desses oradores. 

Outra referência feita no PL 193/16 diz respeito ao que é chamado de conteúdos morais como disciplinas obrigatórias. O documento não explicita o que seriam conteúdos morais, apenas diz, em sua justificativa, no item 14, o seguinte:

Se cabe aos pais decidirem o que seus filhos devem aprender em matéria de moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores, têm o direito de usar a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido previamente aprovados pelos pais dos alunos. (PL193, 2016).

O que seriam estes conteúdos? E mais: haveria aí uma crítica aos Parâmetros Curriculares Nacionais que orientam sobre Temas Transversais, como, por exemplo, o de ética, orientação sexual, pluralidade cultural? Se houver essa crítica, o que sugere o movimento? Que esses temas sejam objeto de disciplinas facultativas, assim como é o ensino religioso?

Pensando este trecho omnileticamente, entendemos que existe uma concepção (da ordem das culturas) de escola que deveria se omitir (ordem das políticas) de trabalhar certos assuntos (ainda que não saibamos, exatamente, quais sejam), o que seria da ordem das práticas. Isto apresenta uma tensão dialética e complexa na medida em que, se assumimos que esta omissão corresponda a adotar a tal imparcialidade defendida, deixamos de lado a execução integral do papel da escola tal como está posto hoje na Constituição, como veremos mais adiante. Isto poderia apontar para uma formação incompleta quanto ao quesito cidadania (e provavelmente outros), como rege nossa Carta Magna. 

Se, por outro lado, assumimos que adotar uma perspectiva laica no ensino não é o mesmo que omitir conteúdos, ou delegá-los a outras instâncias (como, a exemplo do que é sugerido no texto, a religiosa), estaremos entregando um assunto de natureza complexa a quem possui olhar monocular, e não plural. O que incorreria no equívoco, em primeiro lugar, de presumir que todas as famílias brasileiras são praticantes religiosas. Ademais, poderia apontar para a formação segmentada de sujeitos, que só veriam a ética do ponto de vista religioso. Nada temos contra as religiões, mas se algo está próximo a doutrinas, diríamos que são muito mais as religiões do que a própria escola. 

Aliás, a este propósito, constam do site do ESP referências a códigos de ética, estudos científicos, artigos e links sobre o tema que chamam de “doutrinação ideológica”, tomada como tendência do ensino de conteúdos morais e convicções em sala de aula, e que ganha foco maior no movimento. 

Em síntese, sustentamos que argumentar sobre valores e formas de conduta não implica prescrever “conteúdos morais” que deverão ser assimilados, mas fomentar o desenvolvimento de práticas dialógicas voltadas para a socialização do indivíduo. Assim sendo, se é estranho a uma ética fundada sobre a razoabilidade ditar o que o aluno deve ou não deve ser, é igualmente estranho a ela ignorar manifestações relativas a valores e à orientação sexual a pretexto de que a sala de aula não é local para discuti-las. Como não é, se socializar o indivíduo em um contexto plural de respeito às diferenças se constitui em tarefa igualmente fundamental da escola?  

Finalmente, um Estado que se define como laico deve ser neutro em relação a todas as religiões e, portanto, não lhe cabe assumir uma moralidade que esteja identificada com alguma confissão religiosa, ainda que esta seja majoritária no país. Em vista disso, os princípios morais desejáveis em uma escola pública laica são aqueles consagrados por documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu Art 2o prevê que: “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação” (ONU, 1948, s.p.).

 

A RELAÇÃO ENTRE DOCUMENTOS LEGAIS QUE REGEM A EDUCAÇÃO E A PL 193/16

O Projeto Escola Sem Partido também demonstra um distanciamento de vários documentos e políticas educacionais. A fim de tentar entender de que forma o projeto considera a história da educação no país faremos um levantamento dos temas de ética, moral, direitos humanos, sexualidade e inclusão em alguns dos documentos referenciados por profissionais e pesquisadores na área da educação. Começaremos com a referência de ética encontrada dentro da LDB.

Seção IV - Do Ensino Médio o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da pessoa humana, da autonomia intelectual e do pensamento crítico (Brasil,1996).

A única referência direta sobre ética encontrada na LDB está no Capítulo II, sobre Educação Básica, e especificamente na seção que aborda as características e responsabilidades do Ensino Médio. Esta referência apresenta a formação ética como uma das funções do Ensino Médio como forma de aprimorar o educando como pessoa humana dispondo de autonomia intelectual e crítica. Importante analisar que o texto da LDB cita a ética ao lado do pensamento crítico e autonomia, fato que pode representar uma visão de que o exercício da ética tenha relação com a reflexão e a tomada de decisões de forma consciente e crítica. Não encontramos na LDB nenhuma outra referência direta à ética, nem mesmo à palavra moral. No entanto, encontramos uma palavra que poderia ser considerada associada ao entendimento generalizado que se faz do campo semântico de ética e moral.

Seção I – Disposições gerais

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes:

 a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática (Brasil,1996).

A LDB cita a diretriz de difusão de valores fundamentais ao interesse social e aos direitos e deveres de todos os cidadãos com ênfase ao bem comum e à ordem democrática. Sendo assim, o texto faz referência a uma diretriz para a educação básica que tem como preocupação a vida em sociedade e os direitos dos cidadãos em um Estado democrático. Poderíamos inferir que os valores de interesse social não podem estar vinculados apenas à ideia de valor particular ou um grupo específico, como a família, mas sim devem ser negociados e dialogados de forma mais ampla a fim de chegar a uma razoabilidade possível.

Seção III

Do Ensino Fundamental - II a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;

III o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores. (Brasil,1996).

Nas disposições sobre o Ensino Fundamental, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação fala sobre a importância da compreensão do ambiente social e do sistema político, além de valores compartilhados pela sociedade, do desenvolvimento da capacidade de aprender e da formação de atitudes e valores. Novamente, se confrontarmos o que acabamos de ler com o PL 193/16 fica a dúvida sobre como desenvolver a capacidade de aprender e o desenvolvimento de valores sem que outros valores sejam considerados para além do que conhecem em seus grupos sociais, como família e igreja.

Na sequência da pesquisa, levantaremos o que os Parâmetros Curriculares Nacionais falam sobre ética no Ensino Fundamental e Médio. Por meio de alguns trechos do documento tentaremos relacionar o que o PESP propõe e a visão dos PCNs sobre os temas moral, ética e inclusão. 

Objetivos Gerais dos PCN para o Ensino Fundamental - desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania. (PCN-1 a 4 - apresentação dos temas transversais, página 6, 1997). 

Na apresentação dos temas transversais, encontramos a referência à formação integral dos alunos e alunas, com o desenvolvimento da capacidade de se relacionar e com o exercício da cidadania. A formação ética mais uma vez aparece como um dos objetivos da educação básica. A pergunta que surge é: como o PESP considera esses documentos que estão relacionados com LDB? De que forma foram considerados os frutos de diálogos e pesquisas de conselhos educacionais e profissionais da área? De que forma é possível conciliar na prática as orientações que constam nestes documentos com as restrições definidas pelo PL 139/16? 

A reflexão ética traz à luz a discussão sobre a liberdade de escolha. A ética interroga sobre a legitimidade de práticas e valores consagrados pela tradição e pelo costume. Abrange tanto a crítica das relações entre os grupos, dos grupos nas instituições e ante elas, quanto à dimensão das ações pessoais. Trata-se, portanto, de discutir o sentido ético da convivência humana nas suas relações com várias dimensões da vida social: o ambiente, a cultura, o trabalho, o consumo, a sexualidade, a saúde. (PCN,1997). 

Neste trecho dos PCNs um tema importante que aparece relacionado à questão ética é o da convivência humana, considerando várias dimensões, entre elas a da sexualidade. Um tema que aparece com objetivos da educação básica. Retomando o ESP, uma questão que aparece como problema é o debate sobre gêneros e a orientação sexual.

Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

A ideia de ética que aparece nos Parâmetros Curriculares considera o debate e crítica sobre os valores de costume e tradição, e, acima de tudo, a crítica a grupos, instituições ou mesmo a ações pessoais. Como as diferentes formas de viver a sexualidade e o gênero são consideradas pelo PESP ao enfatizar que as teorias de gênero devem ser vedadas? Parece que o texto do projeto quando fala de ética e moral desconsidera práticas que sejam diferentes do que estão tomando como universais. Quem define quais são as práticas legítimas ou valores a serem considerados para uma vida em sociedade? Mais uma vez, a abordagem de ética considerada no PESP não promove o diálogo com as diferenças na sociedade, nem para o projeto de cidadania previsto na Constituição do Brasil. 

Além do colocado acima, é importante mencionar que o PESP utiliza termos equivocados como “opção sexual” e “ideologia de gênero”. Dissemos serem equivocados tendo em vista as compreensões científicas atuais sobre os temas. Há muito já se sabe que a homossexualidade não se trata de uma opção sexual. O sujeito não escolhe ser homo, bi, ou heterossexual. Simplesmente é (Louro, 1997). 

Quanto ao termo ideologia de gênero, pensamos tratar-se de uma estratégia discursiva que pode subverter a lógica científica, ou pior, ressaltá-la apenas em seu caráter de influência cultural, política e prática, numa percepção incompleta da mesma. Cientificamente, falamos em teorias, e não ideologia de gênero. O “peso” da palavra ideologia subverte completamente os achados dos estudos de gênero em privilégio de uma visão monocular e mesmo preconceituosa, na medida em que uma das características marcantes do termo ideologia pode ser a de, veladamente, “fazer cabeças”, sem que o público alvo a que se destina perceba (Meszáros, 1996). Isto sim, em nosso ver, seria uma verdadeira indoutrinação. 

Na continuidade de nossa exploração de outros documentos legais, destacamos a Resolução abaixo:

Art. 3º As Diretrizes Curriculares Nacionais específicas para as etapas e modalidades da Educação Básica devem evidenciar o seu papel de indicador de opções políticas, sociais, culturais, educacionais, e a função da educação, na sua relação com um projeto de Nação, tendo como referência os objetivos constitucionais, fundamentando-se na cidadania e na dignidade da pessoa, o que pressupõe igualdade, liberdade, pluralidade, diversidade, respeito, justiça social, solidariedade e sustentabilidade. (Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824).

A seguir, com o intuito de promover maior diálogo ou confronto sobre o tema de orientação sexual, faremos alguns comentários sobre o que os parâmetros curriculares falam sobre o tema.

Com a inclusão da Orientação Sexual nas escolas, a discussão de questões polêmicas e delicadas, como masturbação, iniciação sexual, o “ficar” e o namoro, homossexualidade, aborto, disfunções sexuais, prostituição e pornografia, dentro de uma perspectiva democrática e pluralista, em muito contribui para o bem-estar das crianças, dos adolescentes e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual e futura. (PCN- EF - 5 A 8 - Orientação sexual, página 293, 1998).

De acordo com o trecho dos Parâmetros para o Ensino Fundamental, os temas do tópico Orientação Sexual devem servir de contribuição para o bem estar de crianças, adolescentes e jovens. Por mais que as questões sejam delicadas e polêmicas, a ética deve servir de norte para não excluir essas temáticas que fazem parte da sociedade e da vida de tantos alunos e alunas. Como é possível promover igualdade e investir na dignidade humana de todos que estão na escola sem que seja possível considerar a dimensão afetiva e da sexualidade? Como é possível contribuir para uma sociedade plural se o debate sobre alguns temas - como orientação sexual - são vedados em favor de um moral particular? O Projeto Escola Sem Partido parece desconsiderar a pluralidade de pessoas, assim como os documentos legais que hoje orientam a educação nacional. 

Na pesquisa pelos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, encontramos a referência ao tema ética com o posicionamento claro sobre a concepção adotada. 

A ética da identidade substitui a moralidade dos valores abstratos da era industrialista e busca a finalidade ambiciosa de reconciliar no coração humano aquilo que o dividiu desde os primórdios da idade moderna: o mundo da moral e o mundo da matéria, o privado e o público, enfim, a contradição expressa pela divisão entre a “igreja” e o “estado”. Essa ética se constitui a partir da estética e da política e não por negação delas. Seu ideal é o humanismo de um tempo de transição.

(Bases Legais – PCNEM- página 66, 2000).

E o documento continua: 

Educar sob inspiração da ética não é transmitir valores morais, mas criar as condições para que as identidades se constituam pelo desenvolvimento da sensibilidade e pelo reconhecimento do direito à igualdade a fim de que orientem suas condutas por valores que respondam às exigências do seu tempo. Uma das formas pelas quais a identidade se constitui é a convivência e, nesta, pela mediação de todas as linguagens que os seres humanos usam para compartilhar significados. Destes, os mais importantes são os que carregam informações e valores sobre as próprias pessoas. (Idem, idem).

Ética da identidade, expressão encontrada nos PCNs demonstra uma intenção de desenvolver uma ética baseada na relação com o outro, e, portanto, com as pluralidades encontradas na sociedade.  A escolha pela junção das palavras identidade e ética pode ter sido adotada por se acreditar que a identidade de um indivíduo se constrói também na relação com os outros, com o diálogo das diferenças. 

Ainda na pesquisa por documentos na área de educação, utilizamos as palavras ética, direitos humanos e sexualidade e encontramos alguns pareceres do Conselho Nacional de Educação. Antes de explanar sobre os trechos é importante esclarecer o papel do CNE na educação nacional.

O CNE é considerado o órgão normativo e de coordenação superior do Sistema Nacional de Educação, dispondo de autonomia administrativa e financeira para se articular com o poder legislativo e o executivo, com a comunidade educacional e a sociedade civil organizada. O órgão coordena a política nacional de educação, articulando-a com as políticas públicas de outras áreas. Também cabe ao CNE garantir a execução das diretrizes, prioridades e metas do Plano Nacional de Educação, interpretar a legislação de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, opinar sobre alterações de iniciativa do poder executivo e estabelecer normas para os sistemas de ensino, articulando-os com os órgãos normativos dos sistemas de educação e com as comissões de educação do Congresso Nacional. Deve, ainda, estimular a integração entre as redes de educação federal, estaduais e municipais, públicas e privadas. Em um de seus pareceres, referente à educação em Direitos Humanos, está escrito:

A Educação em Direitos Humanos tem por escopo principal uma formação ética, crítica e política. A primeira se refere à formação de atitudes orientadas por valores humanizadores, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a igualdade, a justiça, a paz, a reciprocidade entre povos e culturas, servindo de parâmetro ético-político para a reflexão dos modos de ser e agir individual, coletivo e institucional.

(Parecer Nº8, página 8, 2012).

Ao encontrar as referências de ética no parecer sobre Educação em Direitos Humanos, foi possível, novamente, questionar a relação do PESP com as orientações e políticas educacionais já existentes e se o projeto atende às diversidades e à pluralidade a que se destinam as políticas educacionais.  Em todos os documentos pesquisados a abordagem de ética se encontra relacionada diretamente à formação de pessoas com autonomia crítica, com valores humanizadores, com foco na dignidade humana, na igualdade entre pessoas e na reflexão constante sobre modos de agir na coletividade. Essas caraterísticas que se repetem só reforçam o distanciamento do PL 193/16 de todos os debates e avanços conquistados para uma educação que seja inclusiva, ou para todos. 

Os Direitos Humanos têm se convertido em formas de luta contra as situações de desigualdades de acesso aos bens materiais e imateriais, as discriminações praticadas sobre as diversidades socioculturais, de identidade de gênero, de etnia, de raça, de orientação sexual, de eficiências, dentre outras e, de modo geral, as opressões vinculadas ao controle do poder por minorias sociais. (Idem, página 2).

Os documentos pesquisados abordam a ética numa relação direta com a formação de pessoas com autonomia crítica, com valores humanos, com foco na dignidade humana, na igualdade entre pessoas e na reflexão constante sobre modos de agir na coletividade. Essas caraterísticas que se repetem só reforçam o distanciamento do PL 193/16 de todos os debates e avanços conquistados para uma educação nacional que se pretende ser para todos.

O Parecer CNE/CEB nº 5/2011 que fundamenta essas diretrizes reconhece a educação como parte fundamental dos Direitos Humanos. Nesse sentido, chama a atenção para a necessidade de se implementar processos educacionais que promovam a cidadania, o conhecimento dos direitos fundamentais, o reconhecimento e a valorização da diversidade étnica e cultural, de identidade de gênero, de orientação sexual, religiosa, dentre outras, enquanto formas de combate ao preconceito e à discriminação. (Ibidem, página 7).

Outra reflexão que podemos fazer é de que forma orientações já publicadas não atendem à preocupação com o respeito às diferenças, fazendo com que a proposta de modificação da LDB, contida no ESP, seja um desrespeito ao Estado democrático de direito, alimentando, desta forma, o desrespeito às diferenças e à liberdade de aprender e educar. Uma formação ética, crítica e política (in)forma os sentidos da educação em Direitos Humanos na sua aspiração de ser parte fundamental da formação de sujeitos e grupos de direitos, requisito básico para a construção de uma sociedade que articule dialeticamente igualdade e diferença. Como afirma Candau:

Hoje não se pode mais pensar na afirmação dos Direitos Humanos a partir de uma concepção de igualdade que não incorpore o tema do reconhecimento das diferenças, o que supõe lutar contra todas as formas de preconceito e discriminação (2010, p. 400).

Deste modo, em termos de Teoria da Argumentação e da perspectiva Omnilética, ética pressupõe o trato respeitoso com o outro, o reconhecimento mútuo e uma única certeza: a de que o mundo é cultural, política e praticamente diverso, heterogêneo e plural. Neste sentido, impossível concebê-lo sem posicionamentos, que sempre serão ético-políticos, mesmo quando o posicionamento seja o do silêncio.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Buscamos, no presente artigo, refletir sobre alguns sentidos dados à temática da ética e da inclusão, assim como levantar as possíveis tensões entre o sentido destas categorias no PL do Escola sem Partido e nas políticas públicas já existentes. 

Nossa intenção não foi a de exaurir a reflexão, mas de trazer contribuições que a iniciem e que sirvam de base para novos questionamentos, em um movimento contínuo, como cabe à teoria da Argumentação e à perspectiva Omnilética, aqui usadas como base de nossas reflexões. As duas abordagens, embora apoiadas por referenciais teóricos diferentes, se complementam na medida em que propõem fazer uma leitura dialética da realidade, contrapondo-se, portanto, aos pontos de vista que desconsideram as mudanças promovidas pelos sujeitos humanos no curso de sua existência social. 

 Nessa perspectiva, a dialética, por trabalhar com os contraditórios, põe em relevo as tensões entre identidade e alteridade, permitindo conceber a ética como processo que transforma moralmente os indivíduos e simultaneamente é transformada por eles, não se configurando em receituário de valores, normas e formas de conduta estabelecidos a priori. Sendo o homem um ser dinâmico e relacional, a condição de sujeito ético não é uma meta fixada de antemão, mas resultante de múltiplas determinações que englobam a ação da família, da roda de amigos, do grupo religioso e/ou esportivo, etc. Tais determinações muito frequentemente não estão alinhadas, visto que os interesses sociais são distintos e podem, por isso mesmo, entrar em conflito uns com os outros.  

Assim, podemos concluir (sempre provisoriamente) que o PL objeto de análise deste artigo vai na contramão daquilo mesmo que supostamente diz defender: uma postura ética nas práticas escolares. Mais do que isso: vai na contramão de tudo que eticamente se construiu nas últimas décadas e que vem se consolidando nas políticas públicas da educação brasileira, no que diz respeito às chamadas minorias e no seu direito de existir com dignidade, de ir e vir, de ser educada e de ser reconhecida e respeitada.

Manifestamos, assim, nossa profunda preocupação com os significados excludentes destas propostas, assim como com os rumos culturais, políticos e práticos que delas advenham no cotidiano social. Após esta análise, estamos convencidos de que a aprovação de tal projeto de lei representa uma ameaça à ainda frágil democracia brasileira, e por extensão, aos brasileiros e brasileiras que serão vitimados por um texto de lei que, em sua essência, faz calar, e não expressar; amordaça, e não liberta, pré-acusa e não reconhece, tampouco respeita. O oposto, enfim, de um comportamento social ético e inclusivo, tanto do ponto de vista da Teoria da Argumentação quanto da perspectiva Omnilética.  

 

REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro: LaPEADE.

Brasil, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica (2000). Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio). Brasília: MEC.

Brasil (1998). Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9.394/96 – 24 de dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília.

Brasil. MEC. SEF. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF.

Brasil. Ministério da Educação (1997). Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC.

Candau, V. M. F. (2010). Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. Candau, V.M., & Moreira, A.F. (org.), Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: RJ, pp. 13-37.

Louro, G. L. (1997). Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós estruturalista. Petrópolis: Vozes. 

Lukács, G. (2010). Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo.

Menezes, E. T., & Santos, T. H. (2016). Verbete CNE (Conselho Nacional de Educação). Dicionário Interativo da Educação Brasileira. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em: <http://www.educabrasil.com.br/cne-conselho-nacional-de-educacao/>.

Acesso em: 29 de out. 2016.

Meszáros, I. (1996). O Poder da ideologia. São Paulo: Ensaio.

Ministério da Educação (2012). Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Parecer CNE/CP nº 8/2012, aprovado em 6 de março de 2012, homologação publicada no DOU 23/09/2004, Seção 1, p. 24. 

Morin, E. (1977). O Método 1: A Natureza da natureza. Lisboa: Publicações Europa-América.

ONU           (1948).           Declaração           Universal           dos           Direitos           do           Homem.           Disponível           em

www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acesso em 04 de novembro de 2016.

Perelman, C. (2005). Ética e direito. São Paulo, Martins Fontes

Santos, M. P. (2012). Políticas públicas de inclusão de pessoas com deficiência: uma análise omnilética.  In Anais Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino, 16, Campinas. 

 

Santos, M. P., & da Fonseca, M. P. D. S. (2013). Concepções de docentes e licenciandos de educação física acerca de inclusão em educação: perspectiva omnilética em discussão. Interacções, 9(23).

 

 

[1] Professora Associada PPGE – UFRJ; E-mail: monicapes@globo.com

[2] Professor Titular PPGE – UFRJ; E-mail: rj-oliveira1958@uol.com.br  

[3] Mestranda em Educação PPGE-UFRJ- Educação; E-mail: lecalhau@gmail.com    4 O site do projeto que deu origem à PL 193/2016 pode ser acessado por meio de sua página oficial:   http://www.escolasempartido.org/apresentacao

[4] http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-09-06/escola-sem-partido-quer-fim-da-doutrinacao-de-esquerda.html

[5] Juridicamente, o termo “cativo” é aplicado na medida em que, como a educação básica no Brasil é obrigatória, o aluno não tem escolha de querer ou não frequentá-la, tornando-se, portanto, “cativo” da sala de aula, segundo consta no site do próprio ESP.