Artigo

O brincar em grupo de crianças com deficiência visual:  observações de especificidades na interação com parceiros

 

Letícia Coelho Ruiz[1]

Cecília Guarnieri Batista[2]

Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas 

 

 

RESUMO

Estudos sobre o brincar em grupo e crianças com deficiência visual têm destacado obstáculos que podem surgir na interação com parceiros.  Esta pesquisa teve como objetivo analisar formas de interação entre crianças com deficiência visual e a atuação do adulto, em situação de brincadeira, identificando possíveis dificuldades e ações facilitadoras neste contexto. Foram observadas três crianças de cinco anos, com deficiência visual (cegueira e baixa visão). As sessões foram filmadas e foram selecionados episódios, com foco nas formas específicas de interação, de uso dos brinquedos e ações do adulto. A análise foi baseada em categorias referentes à intervenção do adulto pesquisador e à interação entre crianças nas brincadeiras infantis. A análise dos dados indicou formas específicas de interação e elaboração de cenas.  Destacou a atuação da pesquisadora na promoção da brincadeira, a partir de necessidades identificadas, como, por exemplo, a descrição de ações e objetos para a criança cega e várias ações de promoção da brincadeira conjunta.  Considerou-se que grupos de brincadeira favorecem a interação entre crianças com deficiência visual e auxiliam na identificação de formas específica de interação entre elas e de intervenção do adulto.  Esses aspectos foram considerados relevantes para o planejamento pedagógico no contexto da educação inclusiva.

Palavras-chave: 

Educação Especial; Deficiências da visão; Brinquedo; Interação social;  Psicologia do Desenvolvimento

 

ABSTRACT

Studies on group play of visually impaired children emphasized obstacles to peer interaction.  This research aims to analyze models of interaction between children with visual impairment in play situations and the role of the adult, aiming the identification of possible difficulties as well as examples of adult intervention to improve those interactions. Three five-year-old children with visual impairment (blindness and low vision) were observed. The sessions were filmed and episodes were selected, focusing on the specific modes of interaction, use of toys and adult actions. The analysis was based on categories concerning the intervention of the adult researcher and the interaction between children in children's play. Data analysis indicated specific forms of interaction and elaboration of scenes. It was emphasized the researcher's role in promoting play, based on identified needs, such as the description of actions and objects for blind children and different actions to promote joint play. It was considered that playgroups favor the interaction between children with visual impairment and contribute to the identification of specific modes of adult interaction and intervention. These aspects were considered relevant for pedagogical planning in the context of inclusive education.

Keywords:  

Special Education; Visual Impairment; Play; Social Interaction; Developmental Psychology

 

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo discutir alguns aspectos relacionados com a interação entre crianças com deficiência visual em grupos de brincadeira. Pode-se destacar inicialmente, como um dos temas, as formas específicas como a criança com deficiência visual pode conduzir e desenvolver a brincadeira, considerando os aspectos facilitadores e as dificuldades que podem encontrar nas relações com o outro e com o ambiente.  O estudo tem como base a noção de abordagem diferencial de Warren (Warren, 1994), que sugere que pesquisas sobre deficiência visual tenham como foco possíveis diferenças entre pessoas com essa deficiência, e a busca pela análise de casos bem sucedidos, que podem apontar para potencialidades e para a identificação de circunstâncias que favorecem o desenvolvimento dessa criança.

No que se refere ao brincar, é relevante retomar as discussões de Vigotski (1998) sobre a importância da brincadeira de faz de conta, como atividade que auxilia a criança na compreensão de aspectos de sua cultura e lhe permite vivenciar situações da vida adulta e interpretar a realidade que a cerca. O autor afirma que o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal na criança, de forma que “no brinquedo a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além do seu comportamento diário; no brinquedo é como se fosse maior que na realidade” (p.134).  O autor destaca, ainda, que, “é no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos fornecidos pelos objetos externos” (p. 126). Inicialmente, tem-se a percepção de objetos predominando sobre o significado e, depois, há uma inversão, e o significado passa a predominar. O mesmo ocorre com a ação, que inicialmente domina e, depois, passa a ser dominada pelo significado. Esse processo de desenvolvimento ocorre na relação da criança com o ambiente a partir de experiências de interação.

Nesta mesma perspectiva, Rocha (2000) discute sobre as formas de mediação social e a importância da intervenção de outros sujeitos com os quais a criança convive, nos modos de interação desta com os objetos da cultura que a rodeia. A autora destaca que o contato da criança com o mundo não é feito de forma direta; ocorre pela apresentação de outros sujeitos que fazem parte dele. Vigotski (1998) designa como interações mediadas essas formas indiretas de interação, e considera que ocorrem transformações, na criança, por meio das quais os processos interpessoais se transformam em processos intrapessoais (Internalização). Para Vigotski (2009), é a possibilidade de relacionar-se e de comunicar-se que impulsiona o desenvolvimento humano. A mediação do outro provoca o desenvolvimento, quando atribui sentido às ações, aos objetos, aos sons e a tudo o que rodeia a criança. 

No entanto, a deficiência visual pode desencadear dificuldades na interação da criança com o outro e na compreensão do mundo de significados em que está inserida. Uma das dificuldades, apontadas por Reily (2012), refere-se ao acesso às ações do cotidiano. A autora discute que, por esse motivo, as crianças com deficiência visual têm dificuldade em transferir as ações da vida diária para o jogo. No entanto, destaca que, interagindo em contexto lúdico com um grupo de crianças que verbalizem enquanto movimentam os brinquedos, o aluno com deficiência visual conseguirá inteirar-se das dinâmicas e isto possibilitará maior participação nas brincadeiras e melhor compreensão dos contextos de vida diária.  

Ao considerar o desenvolvimento do brincar simbólico em crianças cegas, Ochaíta e Espinosa (2004) afirmam que não é possível esperar que elas reproduzam o jogo simbólico da mesma forma que as crianças videntes, sem ter o acesso visual às cenas do cotidiano. Afirmam ainda que “no que se refere ao planejamento do jogo, parece que crianças não videntes acham mais fácil planejar o jogo do que executá-lo, o que mais uma vez revela a importância da linguagem no desenvolvimento do jogo na ausência da visão” (p.160).

Ao tratar sobre o desenvolvimento de crianças com deficiência visual, Ruiz e Batista (2014, p. 211) afirmam que:

As possibilidades de desenvolvimento da pessoa com deficiência visual dependem do entendimento sobre como ela aprende e de como é concebida em relação a seu valor social.  Seu desenvolvimento depende, em grande parte, das experiências sociais com parceiros, mediadas por adultos. Ao longo dessas interações, quanto mais a criança puder construir uma imagem positiva de si mesmo, com foco em suas capacidades, mais terá possibilidades de desenvolvimento e engajamento social.  Nesse sentido, é importante analisar as formas como a criança com deficiência visual se relaciona com parceiros e que mecanismos facilitam seu engajamento nos grupos e sua participação ativa.

Algumas pesquisas (França-Freitas & Gil, 2012; Hueara et al., 2006; Ruiz & Batista, 2014; Silveira, Loguercio & Sperb, 2000) têm buscado compreender como se desenvolve o brincar na ausência da visão e se existem diferenças que influenciam a interação entre as crianças.  Os estudos analisam contextos de brincadeiras em grupo e discutem especificidades observadas nas formas de brincar da criança com deficiência visual e estratégias que podem auxiliá-la na interação com parceiros, por meio da intervenção do adulto neste contexto.  As autoras destacam o grupo como um espaço para conhecer a criança e intervir com ações que possam promover a interação. 

Um exemplo de pesquisa com grupos, com foco nas interações entre crianças com deficiência visual e outras alterações no desenvolvimento, é o estudo de Hueara et al. (2006).  Num dos episódios analisados, as autoras descrevem uma cena em que uma das crianças desconhece a palavra estrado e o objeto que representa. No contexto da brincadeira com objetos de casa em miniatura, a criança consegue compreender o que é estrado e sua função em uma cama. Não foi necessário o contato com o objeto real, apenas com a miniatura no contexto da brincadeira e as informações trazidas pelos parceiros, para que a criança elaborasse o conceito de estrado. 

Considerando as dificuldades de interação e as adequações que podem ser organizadas para melhorar a participação de crianças com deficiência visual em momentos de brincadeira, a pesquisa de França-Freitas e Gil (2012) discute que as crianças no grupo de brincadeira tenderam a buscar mais interação com o adulto e menos com seus pares de mesma idade. As autoras fazem algumas perguntas relevantes para a reflexão e análise sobre o brincar em grupo e a criança cega, relacionadas às dificuldades para se engajar nas brincadeiras em grupo e aos motivos que levam a este cenário. A partir dessas perguntas é possível pensar em maneiras para melhorar essa interação. As autoras afirmam ainda, com base nos resultados, que crianças cegas, ao receberem estimulação constante e especializada, provavelmente serão capazes de brincar de faz de conta e criar brincadeiras imaginativas envolvendo jogos de papéis, tão bem ou até melhor que as crianças videntes. A interação possibilita o desenvolvimento de formas mais elaboradas de brincar, de criações com o brinquedo, associadas à imaginação e à linguagem.  

De forma semelhante à criança cega, a criança com baixa visão pode também apresentar dificuldade na interação com o grupo e no interesse por brincadeiras, pela falta de motivação em explorar os objetos. Gasparetto (2008) discute que os objetos precisam estar acessíveis aos olhos e às mãos da criança com baixa visão, para a criança poder ver, tocar e, dessa forma, ir em busca do brinquedo e começar a brincar espontaneamente. Muitas vezes, a visão não é suficiente para trazer todas as informações sobre o brinquedo, que são importantes para a compreensão sobre seu significado, havendo necessidade de complementar essa exploração com informações trazidas pelo tato e pela linguagem. 

Considerando essas discussões, este estudo pautou-se em alguns questionamentos: Como a criança com deficiência visual brinca? Existem diferenças ou formas específicas de elaborar a brincadeira? Quais ações podem facilitar ou dificultar o brincar com parceiros?

Quais intervenções do adulto podem facilitar o desenvolvimento do brincar em grupo?

A partir dessas perguntas, a pesquisa analisou o brincar em grupo de crianças com deficiência visual, formas de interação entre as crianças, formas específicas de exploração dos brinquedos e intervenção do adulto nesse contexto. 

 

MÉTODO Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas-UNICAMP (parecer nº 1126/2009). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido contendo os objetivos do estudo, a não obrigatoriedade em participar e a garantia de anonimato dos participantes foi entregue e assinado pelo responsável. As crianças participantes foram referidas por nome fictício nos relatos.

 

Participantes

O estudo foi realizado em um Centro de Apoio Educacional para crianças com dificuldade de aprendizagem de um município de porte médio do estado de São Paulo/ Brasil. As crianças participantes já eram atendidas no local.  

Para este artigo, é analisada a participação de três crianças, de 5 anos de idade, com diagnóstico de deficiência visual e queixa de dificuldades escolares. 

As crianças foram organizadas em um grupo, com foco na elaboração de brincadeiras relativamente livre, com o acompanhamento do pesquisador.  Os participantes foram descritos a seguir.

Tabela 1- Participantes do grupo

 

Procedimento de coleta e análise dos dados

A análise microgenética de episódios foi a estratégia metodológica escolhida para nortear esta pesquisa, tomando-se como base os estudos de Carvalho e Pedrosa (2002) e Góes (2000). Envolveu análise qualitativa de episódios, a partir da transcrição de material videogravado.

Segundo Góes (2000), na análise microgenética são transcritos e analisados episódios significativos, de acordo com a perspectiva histórico-cultural. A pesquisadora afirma que esse tipo de análise surgiu das proposições de Vigotski, segundo as quais os processos de desenvolvimento humano ocorrem nas relações com o outro e com a cultura.  A autora destaca que esse tipo de análise é micro por considerar minúcias indiciais de desenvolvimento e por isso há a necessidade de fazer recortes num tempo restrito. O termo genética refere-se ao seu sentido histórico, por relacionar fatos passados e presentes e é sociogenética por buscar relacionar os eventos singulares com outros planos da cultura e das práticas sociais.

Para o presente estudo, considera-se que essa análise é relevante, pela possibilidade de observação das interações entre as crianças em grupo, e a possibilidade de identificar formas de atuação e influência do adulto, que podem estar relacionadas ao desenvolvimento das crianças observadas (o que exigiu um trabalho de interpretação dos episódios observados).

O material foi coletado do total de 8 sessões. Para este artigo são apresentados os dados de três sessões diferentes. Cada sessão teve duração de aproximadamente 40 minutos. Foram realizados também registros em diário de campo. As sessões aconteceram no período de três meses, uma vez por semana.  A pesquisadora em atuação no grupo tinha como proposta dispor condições para brincadeiras entre as crianças (o que envolveu o planejamento do espaço e a escolha dos brinquedos), e acompanhar as atividades de forma a permitir iniciativas por parte do grupo. Os brinquedos foram escolhidos de acordo com algumas características: tamanho (maior que 15 cm), cores contrastantes, sonoridade, textura.

 Foram selecionados episódios significativos, considerando-se como episódio uma sequência interativa ou trecho de registros em que se pode delimitar um grupo de crianças pela organização espacial ou participação em uma atividade (adaptação de Carvalho & Pedrosa, 2002). Como os temas das brincadeiras elaboradas pelo grupo desta pesquisa tinham uma duração longa, a ponto de ter continuidade em dias subsequentes à sessão iniciada, foi necessário organizar recortes por temas das brincadeiras e dentro dos temas, selecionar episódios. As filmagens foram assistidas repetidas vezes e as cenas foram transcritas de forma a detalhar os acontecimentos do enredo elaborado. Para isso foram transcritas também algumas ações não verbalizadas pelos participantes, de modo a preservar a compreensão do enredo organizado durante as sessões e propiciar melhor análise das interações.

Para o presente relato foram escolhidos três episódios, da primeira, segunda e sexta sessão. Definiu-se como critério de escolha as sessões que contivessem brincadeiras conjuntas com exemplos de interação mais complexas e elaboradas entre as crianças (categoria Faz de conta cena) e a atuação do adulto para a organização dessa interação conjunta (categorias: Sugestão para uso do objeto ou organização do espaço, Sugestão para faz de conta e Sugestão para integração.

A seguir é apresentada a descrição das categorias.

 

 

Resultados

Para a organização da análise das sessões, foi elaborado um sistema de categorias, que abrangeu os seguintes aspectos: formas de interação (criança-criança e adulto-criança) e formas de uso de objetos.

A discussão foi organizada a partir da análise das categorias e de formas específicas de interação com parceiros, uso dos brinquedos e de intervenção do adulto pesquisador.

No que se refere à categoria de Interação criança-criança, foram observadas suas formas de relacionamento, organizadas em sub categorias descritivas: Ação individual, Ações dirigidas ao parceiro (envolvendo relações de afinidade ou oposição) e Ação conjunta

Quanto às Interações adulto-criança, foram elaboradas categorias relativas às falas do adulto direcionadas às crianças. Foram destacadas três formas de intervenção do adulto, em que não havia sugestões para ação das crianças: Comentário, Avaliação positiva e Desaprovação. Outras três sub categorias envolveram exemplos de sugestão para ação das crianças: Sugestão para uso do objeto ou organização do espaço, Sugestão para faz de conta e Sugestão para integração

No que se refere ao Uso de objetos, envolvendo os brinquedos disponibilizados para o grupo, foram elaboradas sub categorias relativas ao tipo de brincadeira estabelecida, que poderia envolver: Exploração/montagem ou diferentes Modalidades de Faz de conta:

Explicitação de Planos, Faz de conta simples e Faz de conta com a organização de cenas. A seguir serão apresentados três episódios das sessões 1, 2 e 6.

 

Sessão 1 -  Episódio 1: O caçador e a polícia

Carlos e Guilherme brincam com bonecos de pano, carrinhos, blocos de madeira e uma casa de encaixe. Carlos diz que um dos bonecos é o lobo. G constrói uma casa com blocos de madeira e não quer que o lobo derrube sua casa.

  1. G: E agora o lobo vai derrubar a minha casa. O que que eu faço?
  2. C: Você chama o porquinho que fica nessa casa. Aponta e põe a mão na casa.
  3. G: Ah tá! Então eu vou construir outra. Se o lobo vier eu chamo logo o porquinho.
  4. C:esconde dois bonecos de pano atrás do corpo.
  5. C: Vai vim dois lobos. Olha para G, preparando a chegada dos lobos escondidos.
  6. G: Um para derrubar a sua e outro pra tentar derrubar a minha. Empilha os blocos.
  7. (...)
  8. C: Ele tá vindo, ele tá vindo!
  9. G: E agora o que é que eu faço, o que é que eu faço?
  10. C:URRRRRRR. Faz som do lobo bravo e tira os dois bonecos de trás do corpo.
  11. G: Se assusta e derruba os blocos que estava empilhando.
  12. G: Eu já derrubei minha casa! Ele nem deu tempo de derrubar. E agora? O que que eu faço Carlos?
  13. C: O que é que você faz? Chama.... 14. G: O que ? O que é que eu chamo?
  14. C: O porquinho que mora na minha casa...
  15. G chama, atendendo prontamente a sugestão de C: Oh, porquinho!
  16. C: Faz voz grossa: O quê?
  17. G: Eu não quero mais esse lobo derrubando a minha casa!
  18. C: O lobo? C mexe com os dois bonecos de pano.
  19. G: É! O que eu faço?
  20. C: Eu preciso fazer uma coisa... (C abre a porta da casinha imitando a voz do porquinho) Eu vou sair da minha casa e eu vou derrubar.
  21. C: Simula uma luta entre o porco e o lobo com os bonecos de pano.
  22. G: Derrubar o que?
  23. C: Simula outra briga entre os personagens. Faz som alto: Ooouuu! Grita levando um dos bonecos para o alto e caindo no chão com um som onomatopaico de queda Puch!
  24. P: O que aconteceu aí Carlos?
  25. C: Derrubaram o lobo!
  26. P: Quem derrubou o lobo?
  27. C: O porco.
  28. G: Sabe por quê? Eu não queria que ele derrubasse a minha casa.

 

Comentários sobre o episódio

Guilherme e Carlos iniciam um enredo parecido com a história dos três porquinhos. Guilherme mantém a brincadeira fazendo mais uso da linguagem do que da manipulação de objetos, o que também acontece em outras sessões. Carlos usa mais os brinquedos e suas falas mais elaboradas geralmente são provocadas pelas perguntas dos parceiros e da pesquisadora. Quando Carlos movimenta o boneco e não verbaliza o que está acontecendo, Guilherme perde algumas informações. A pesquisadora faz perguntas (25, 27), nesse momento, para que Carlos faça mais descrições sobre o que ocorreu na ação com as personagens. A atuação do adulto interferindo e fazendo perguntas para conseguir mais informações sobre a ação de Carlos, mostra para Guilherme que ele mesmo pode formular essas perguntas, incentivando o uso de estratégias mais autônomas na interação que podem ser utilizadas em outros contextos.

 

Sessão 2- Episódio 2: A construção  

A pesquisadora incentiva a interação entre Guilherme e Carlos no início da sessão. Guilherme senta no tapete e presta atenção nas falas da Pesquisadora e Carlos. Carlos explora alguns animais em miniatura e caixas de fita cassete vazias. Mexe nos brinquedos e aproxima dos olhos cada um deles.

  1. G: Eu vou construir uma casa para os meus bichinhos. G fala sem explorar os brinquedos disponíveis.
  2. P:Que bichinhos tem aí hein?
  3. P:O que o Carlos está pegando?
  4. Carlos mexe nas caixas vazias de fita cassete.
  5. G: Como é que constrói? Colocando um em cima do outro?
  6. P: Como você acha que é?
  7. C: Assim ó... e procura a atenção visual de G.
  8. G: Como?
  9. C explica como pode construir: Primeiro constrói uma ponte. É só você pegar isso e por por por por... C empilha as caixas. 
  10. P: Mostra para ele Carlos.
  11. G estica a mão e pega uma peça: Assim? Colocando um em cima do outro?
  12. P: Pode ser assim também.
  13. G empilha as caixas que estão próximas de seu corpo de uma forma um pouco diferente de C.
  14. C: Assim ó! C continua buscando a atenção visual de G para o que está construindo.

 

Comentários sobre o episódio

A pesquisadora inicia fazendo perguntas (2, 3) e buscando o interesse de Guilherme pelos brinquedos que estão disponibilizados. Ele mostra interesse em construir algo (1, 5) e Carlos procura ensiná-lo a construir buscando sua atenção visual (7, 9, 14).  Guilherme busca reproduzir o que Carlos está fazendo. Empilha as caixas de forma um pouco diferente e faz perguntas para confirmar se compreendeu corretamente as indicações. É provável que Guilherme já tivesse alguma experiência com materiais de construção, por isso não precisou de orientações mais específicas para compreender como poderia empilhar as peças. Em outros episódios a Pesquisadora incentiva Carlos a deixar Guilherme tocar os objetos quando queria mostrar algo para ele. G por sua vez é incentivado a pedir para ver, esticando as mãos, e pedindo para tocar o brinquedo de modo a auxiliar as crianças a entenderem sua necessidade de querer tocar os objetos, em alguns momentos. Porém, neste episódio, não foi necessário o uso do tato para que compreendesse como poderia construir. As pistas auditivas e as verbais (mesmo que não muito claras) foram suficientes.

 

Sessão 6- Episódio 3: A banda  

Carlos, Kleber e Guilherme estão sentados sobre um tapete de borracha com alguns brinquedos. Exploram algumas miniaturas de instrumentos musicais.

  1. G: Quem tem o pandeiro? Cadê o pandeiro? G se aproxima de K que está tocando o pandeiro.
  2. G: Cadê o pandeiro? Estica a mão em direção a K.
  3. K solta o pandeiro no chão e pega a gaita.
  4. G: Cadê o pandeiro? G se desloca em direção ao pandeiro.
  5. K volta a pegar o pandeiro e tocar.
  6. G fica perto de K com a mão esticada pedindo o pandeiro. Consegue tocar o pandeiro na mão de K.
  7. P: Mostra para ele.
  8. G: Deixa eu ver.
  9. K solta o pandeiro perto de G que consegue pegá-lo.
  10. G: Eu vou tocar. G faz sons ritmados com o pandeiro. (...)
  11. C faz sons com a gaita. K estica a mão e pega a gaita de C que solta o brinquedo.
  12. G: Isso aqui tá parecendo uma capoeira.
  13. P: O que você está tocando Gui? Conta pra mim.
  14. G: É a capoeira.
  15. C continua tocando o violão e G o pandeiro.
  16. P: Kleber, você já foi na Capoeira?
  17. K: Eu, eu já fui?
  18. P: Você já foi, Kleber?
  19. K: Eu já.
  20. K pega a gaita e toca.
  21. C toca a gaita e K pega o violão e toca também.
  22. P: Que tal a gente fazer uma banda?

Depois de algum tempo explorando os brinquedos individualmente, os participantes aceitam a sugestão de formar a banda e tocam juntos por um período aproximado de quinze minutos. Levantam e dançam tocando os instrumentos.

 

Comentários sobre o episódio

Nesta sessão a interação entre as crianças, inicialmente, não acontece espontaneamente. Guilherme (1, 2, 4, 6, 8) busca o brinquedo de seu interesse, faz perguntas sobre sua localização, mas não encontra resposta dos parceiros.

Carlos e Kleber exploram alguns brinquedos, fazem trocas, usando poucas falas neste período. Tendem a brincar individualmente.

A pesquisadora faz perguntas, incentivando o grupo a falar sobre o tema proposto por Guilherme (13, 16, 18, 22), a capoeira, buscando o interesse por um enredo comum, até que sugere a formação da banda que acontece depois de um tempo ainda de exploração individual dos brinquedos. Iniciada a brincadeira conjunta com um tema comum, não foram necessárias muitas intervenções da pesquisadora, uma vez que as crianças conseguiram se organizar e dar continuidade à brincadeira de forma mais independente.

 

Discussão

Na análise dos episódios é possível perceber algumas especificidades encontradas nas formas de interação de cada criança e na atuação do adulto.

Formas específicas de interação da criança cega: Guilherme faz uso constante do diálogo durante as sessões, utilizando poucos brinquedos. Sustenta a brincadeira organizando enredos, temas, fazendo perguntas, solicitando ações aos parceiros. Foi incentivado a fazer mais uso dos brinquedos, em alguns momentos em que a falta do objeto dificultava a interação com os parceiros. A pesquisadora descreveu os brinquedos no início das sessões e procurou fazer perguntas para as outras crianças, incentivando-os a falar sobre os brinquedos e brincadeiras que estavam elaborando. Reily (2012) destaca a importância dessa verbalização das ações para que a criança cega possa engajar-se na brincadeira e compreender ações do cotidiano representadas na brincadeira. 

Guilherme no início das sessões mantinha-se atento aos diálogos e se movimentava pouco no ambiente. Fazia algumas propostas de brincadeira, dizia o que iria fazer com pouca busca por objetos. Essa observação concorda com a afirmação de Ochaíta e Espinosa (2004) de que parece que as crianças cegas acham mais fácil planejar o jogo do que executá-lo, o que revela a importância da linguagem no desenvolvimento da brincadeira na ausência da visão. O uso da linguagem destaca-se em todas as sessões. Guilherme participa ativamente sugerindo enredos, fazendo perguntas, solicitando auxílio, quando necessário. No decorrer das sessões a movimentação no ambiente e a busca por brinquedos se intensificaram, o que oportunizou mais proximidade com os parceiros e mais interesse em explorar diferentes materiais. 

Uma das queixas da escola era sobre a dificuldade de interação de Guilherme com os colegas nas brincadeiras e a busca pela interação apenas com o adulto. De modo geral, usou mais a linguagem para manter sua participação nas brincadeiras e buscou interagir com os parceiros, com alguns auxílios do adulto para que não perdesse a motivação em decorrência dos obstáculos surgidos durante a interação. 

A ação da pesquisadora fazendo comentários, perguntas e sugestões, buscou a atenção conjunta nos enredos sugeridos pelas crianças. Essa ação, procurou incluir todos os participantes no mesmo tema de brincadeira e possibilitou períodos mais extensos de interação. No caso de crianças com deficiência visual, as ações do adulto com o objetivo de promover a atenção conjunta no mesmo tema de brincadeira, podem otimizar a participação do grupo na construção de narrativas e consequentemente na construção de conhecimento.

 

Formas específicas de interação das crianças com Baixa Visão

Carlos e Kleber mostram formas específicas de exploração dos brinquedos. Kleber aproximou os brinquedos do melhor olho de visão, fazendo movimentos circulares com a cabeça. Mantinha-se em silêncio, concentrado nesta ação até fazer a escolha por um objeto. Carlos além de aproximar os brinquedos dos olhos, fazia perguntas sobre ele, parecendo querer confirmar o que estava vendo. Carlos também fazia mais uso do tato, virando o objeto em sua mão em diferentes posições, parecendo buscar mais informações. Gasparetto (2008) discute sobre esse tempo para exploração visual e tátil dos brinquedos pela criança com baixa visão. É importante considerar que o tempo para exploração dos brinquedos também precisa ser maior para essas crianças e esse tempo precisa ser compreendido e respeitado nos diferentes contextos de participação nas brincadeiras. É relevante lembrar que Carlos pode precisar de um tempo maior também por apresentar o diagnóstico de Microcefalia.

É importante destacar que houve uma escolha por brinquedos com maior contraste, e em tamanhos maiores, para incentivar o interesse pelos materiais. Uma das queixas na escola em relação a Carlos era muita agitação e pouco interesse pelos brinquedos e brincadeiras conjuntas. Com relação a Kleber também havia a queixa de pouco tempo de envolvimento na mesma brincadeira e exploração rápida dos brinquedos.

Considerando a importância da interação e do processo de internalização destacado por Vigotski (1998), é essencial organizar ações que proporcionem a participação das crianças nas atividades com parceiros que possibilitem o desenvolvimento do brincar e, consequentemente, das funções mentais superiores.

 

Formas específicas de atuação do adulto: A pesquisadora no início das sessões descreveu o ambiente e os brinquedos disponibilizados procurando despertar o interesse das crianças pela busca por brinquedos, o que não ocorreu de forma espontânea para Guilherme. 

A pesquisadora ao fazer perguntas como, O que o Carlos está pegando?, incentiva Carlos a falar sobre os brinquedos que está vendo e escolhendo. Esta ação possibilita à criança cega saber sobre a brincadeira do parceiro e se engajar em uma brincadeira conjunta. Em outras sessões a pesquisadora faz perguntas para que Guilherme saiba sobre os brinquedos que estão com os parceiros incentivando-o a fazer perguntas também e adquirir autonomia para se relacionar com o grupo e se engajar em brincadeiras conjuntas.

Quando Carlos usa pistas visuais para mostrar algo para Guilherme, a pesquisadora busca explicar como pode dizer ou mostrar de maneira que Guilherme compreenda.  Ele começa a entender também que tipo de perguntas pode fazer para receber as informações necessárias a sua compreensão.

De modo geral, foram observadas mudanças nas formas de brincadeira de Guilherme, Carlos e Kleber o que é relevante na perspectiva histórico-cultural (Vigotski, 1998), que destaca o brinquedo como uma atividade condutora do desenvolvimento da criança. Durante as sessões foi possível observar que Carlos e Kleber utilizaram mais a linguagem no decorrer das sessões, mantiveram por mais tempo o foco em um mesmo tema e se engajam mais nas brincadeiras conjuntas. Guilherme intensificou sua movimentação no ambiente, a busca e utilização de brinquedos e uso da linguagem para solicitar informações sobre os brinquedos e brincadeiras dos parceiros. Em alguns episódios, inicia dizendo o que vai fazer e depois pergunta se tem brinquedos específicos para elaborar o que já organizou no seu imaginário. Carlos e Kleber, nas primeiras sessões, olham os brinquedos, exploram e depois começam a criar brincadeiras com os objetos. Carlos em algumas sessões finais da pesquisa começou a solicitar alguns brinquedos específicos para continuar temas de brincadeiras iniciadas em sessões anteriores.

Essas observações convergem com as discussões sobre a ação e significado no brinquedo e a possibilidade da criança aprender a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, de acordo com Vygotsky (1998). 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerou-se que grupos de brincadeira entre crianças com deficiência visual favorecem a identificação de formas particulares de interação e de desenvolvimento da brincadeira. O grupo oportuniza intervenções específicas do adulto que podem favorecer a interação, a elaboração de cenas e a aquisição de conhecimento. A atuação do adulto é fundamental na escolha dos materiais, na descrição inicial dos brinquedos, no favorecimento da participação da criança com deficiência visual e na promoção da interação entre as crianças. Foi possível observar que as intervenções da pesquisadora aconteceram com maior frequência no início das sessões e foram decrescendo na medida em que as crianças iam se organizando com maior autonomia nas brincadeiras. Esse dado é importante quando se analisa o papel do adulto na mediação de grupos, como incentivador, organizador, promotor de ações entre as crianças, de forma a respeitar e valorizar as iniciativas das mesmas, auxiliando na construção de uma imagem positiva de si mesmas, quando assumem, por exemplo, papeis de liderança no grupo.

Esse tipo de organização pode ser utilizada em atendimentos especializados com o objetivo de conhecer melhor a criança e orientar profissionais e familiares diante das possíveis dificuldades. 

 

REFERÊNCIAS

Carvalho, A. M. A., & Pedrosa, M. I. (2002). Cultura no grupo de brinquedo. Estudos de Psicologia, 7(1), 181-188.

Gasparetto, M. E. R. F. (2008). Família e Escola: Atenção à Baixa Visão. In O. Souza (Org.), Itinerários da inclusão escolar: múltiplos olhares, saberes e práticas. Canoas: Ed. ULBRA.

Góes, M. C. R. d. (2000). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos Cedes, 50(9-25), 9-25.

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[1] Pedagoga, Mestre em Saúde, Reabilitação e Interdisciplinaridade; Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP, Brasil. E-mail: letsruiz@yahoo.com.br

[2] Professora doutora, em Psicologia, Departamento de Desenvolvimento Humano e

Reabilitação, Centro de Estudos e Pesquisa em Reabilitação, Faculdade de Ciências Médicas,

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. E-mail: cecigb@fcm.unicamp.br